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23/10/2019 19:51:29

Cabelo nas ventas é a crônica desta semana do Concurso da Aojustra
Textos sobre o dia a dia do oficialato serão recebidos até o próximo mês.

A Aojustra realiza, até o próximo mês de novembro, o Concurso de Crônicas sobre o dia a dia do oficialato. Os textos remetidos por Oficiais de Justiça de todo o Brasil têm o objetivo de registrar a atividade através de histórias reais que podem ser engraçadas, sensíveis, inusitadas ou até sobre os riscos enfrentados no cumprimento das ordens judiciais. 

Os cinco primeiros colocados serão contemplados com uma viagem para Colônia de Férias em Caraguatatuba conveniada com a Associação, além de outros prêmios que serão entregues aos participantes durante a confraternização de final de ano marcada para 28 de novembro no bar Salve Jorge, em São Paulo.

Para participar, o Oficial deve enviar a crônica para os e-mails aojustra@outlook.com e ane.galardi@gmail.com. É importante que o texto esteja devidamente identificado com o nome completo do autor, bem como a lotação e um número de telefone para contato. 

Intitulado “Cabelo nas ventas”, o texto desta semana é mais uma contribuição de autoria do Oficial de Justiça Rogério Santos de Carvalho, da 54ª VT de São Paulo. Confira: 

CABELO NAS VENTAS

Já faz um tempinho, estava eu jogando conversa fora com um amigo, falando sobre trivialidades, eis que surge, invariavelmente, o ensejo de falar de música. Falei que gostava muito de Gilberto Gil e Pepeu Gomes, no que o amigo me disse que não gostava deles porque aquela coisa de “porção mulher” e “homem feminino” seriam “coisa de viado”. Não discuti. Sinceramente, é perda de tempo discutir com pessoas, às vezes queridas, com essa mentalidade tosca. Na verdade, eu não sei nem quero saber o que os referidos artistas fazem com suas respectivas genitálias e orifícios. Gosto de suas canções e pronto. Penso mesmo é que gente assim é incapaz de entender a sutileza dos versos, nem tampouco se dar conta da dualidade do ser humano.

Parece-me claro que todos os homens e mulheres têm ambos os lados, sejam eles hetero, homo, bissexuais e outras coisas do gênero. Entendo a “porção mulher” como a sensibilidade, o permitir-se chorar de vez em quando, a ternura que todo homem tem, mesmo que negue e tente esconder. Por outro lado, a “porção homem” seria a atitude da mulher, o sustentar-se, o “partir para dentro” e realizar, sem esperar pelo provedor, o homem que faz por ela, atributos que toda mulher tem, ou deveria ter, e se valer deles. 

Falando nisso, lembro-me de uma mulher com quem convivi por alguns anos. Era minha colega de trabalho, na Central de Mandados do Fórum Regional de Madureira, e amiga para muitos momentos de sufoco. Ela trazia consigo um poder de atitude, decisão, coragem, uma mulher de cabelo nas ventas, enfim, “mais macho que muito homem”, como, aliás, diz outra canção. Fizemos várias diligências juntos, passamos por muito perrengue, ameaças de morte, inclusive. Extremamente educada, falava com magistrados e com a mais humilde das pessoas com a mesma polidez, mas fazia valer a sua opinião, seu ponto de vista e sua autoridade no cumprimento dos mandados, conforme o caso, sempre dosando, sabendo a medida exata para cada situação. Porém, havia momentos em que nem ela conseguia se manter no prumo. Houve casos excepcionais em que ela se indignava com a canalhice do ser humano. Num desses, chegou a pegar pelo colarinho um cidadão, que, ao ser afastado do lar por haver batido na mulher e na filha de 14 anos, xingou-as de todos os palavrões que lhe vieram à cabeça, para depois jogar o botijão de gás num rio que passava atrás da casa, de modo a que elas não pudessem fazer comida. A colega perdeu as estribeiras, passou-lhe uma descompostura e quase dá umas bolachas no sujeito. Em outra oportunidade, durante um despejo de um policial-militar de quase dois metros de altura, que estava se recusando a sair do imóvel, ela radicalizou. Num dado momento, durante as conversações para uma desocupação na paz, o militar disse “que ainda não havia atirado em ninguém naquele dia”. Para quê? Ela, ex-policial, virou-se para ele, estufou o peito e mandou-lhe, na lata: “Ah, vai dar tiro? Que comece então por mim, agora. Vai, atira ou para de bravatas, porque isso do que você se orgulha ser eu já fui há muito tempo e não tenho nenhuma saudade!”. O meganha não atirou, é claro, e foi murchando, murchando até sumir. Ela botou o sujeito num vidrinho de esmalte e a diligência acabou. Coisas no caminhão, depósito público e fim. Isto tudo sem auxílio de força policial. 

Nessa mesma ocasião, frequentávamos, eu e essa valorosa colega, um curso preparatório visando à magistratura, que se dava em todos os sábados e durava o dia inteiro. Até que ela começou sentir um desconforto abdominal, sempre depois do almoço. Foi piorando, chegando a ter dores horríveis. Procurou um médico, fez exames e mais exames para, enfim, ter diagnosticado um câncer no intestino. Ela operou, fez quimioterapia. Depois de pouco tempo, o câncer voltou. Operou novamente e de novo passou pelo insuportável tratamento. Sem reclamar, sem se queixar, sem perder a fé, sem dar um pio, sem abaixar a guarda. E venceu. Logo, logo já estava participando de corridas de rua. Um exemplo de mulher, independentemente de sua orientação sexual, que, por sinal, era hetero, esposa e mãe dedicada, se é que isso faz alguma diferença. Ela era mulher com a “porção homem” em sua plenitude, sem deixar de ser feminina.

O tempo passou e eu vim para São Paulo. Com cada um cuidando de suas vidas e seus afazeres, os contatos foram rareando cada vez mais, mas as lembranças e o amor fraternal continuam mesmo a distância.

Recentemente, eu estava tomando um café com meu irmão caçula, que também é Oficial de Justiça. Conversa vai, conversa vem, falando das particularidades do ofício, mencionei esses episódios envolvendo a querida colega. Foi quando ele, após ouvir com atenção, falou com certo espanto de um fato curioso. Disse ele que estava, um dia, numa concessionária de veículos no Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro, quando foi atendido por um vendedor e começou a conversar. Talvez por tomar conhecimento do cargo de meu irmão, o rapaz passou a lhe contar a sua vida, os seus reveses, a sua separação traumática e o drama que enfrentara quando a ex-mulher sumiu com a sua filha e que nenhum Oficial de Justiça a encontrava. Relatou que vários tentaram, sem êxito, até que apareceu uma Oficiala diferente. Oficiala, não: segundo as palavras dele, um anjo. 

Era a nossa heroína de quem falei o tempo todo: um anjo chamado Rita.


Da assessoria de imprensa, Caroline P. Colombo