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Crônicas 2019
Confira os textos que concorrem no Concurso de Crônicas da Aojustra


P no C
Por Ane Galardi (Aposentada)


Era um dia como outro qualquer e eu levava uma intimação de sentença a um estabelecimento comercial.

Ao chegar no local, fui recebida pelo sócio, me apresentei como Oficial de Justiça e ele, de pronto, falou: “Ah, é você mesma que vai me ajudar a tirar essa pica do meu cu.”

Foram alguns segundos, mas parecia uma eternidade o que passou pela minha mente: Dou voz de prisão? Chamo a polícia? Vou à farmácia comprar vaselina? Até cheguei a me olhar para ver se estava vestida corretamente e estava toda arrumadinha, até com um lencinho chique no pescoço.

Bom, aí como costuma ser do meu feitio, resolvi perguntar: Qual é o seu problema?

O problema do moço da pica entalada era ter recebido a citação inicial do processo como se fosse sua, porque o nome fantasia do estabelecimento dele era o mesmo que de um outro estabelecimento em Uberlândia que havia fechado, mas um comércio não tinha vínculo nenhum com o outro e, como ele engavetou a citação e não compareceu à audiência, o juiz o condenou na ação que ele não deveria ter feito parte. Ou seja, quem entalou aquilo nele foi o próprio!

Esclareci que ele deveria arguir nulidade no processo, juntando seu contrato social desde a constituição da empresa e alterações posteriores, alegando que não havia responsabilidade da sua empresa naquela ação.

Ele fez isso, soube depois, quando fui lhe entregar outra citação, esta certa e de um outro caso, e ele me explicou que fez o que eu disse e o juiz reconheceu que não havia responsabilidade da empresa no caso.

Bom, descobri que não sou especialista no assunto tratado, mas com um pouco de boa vontade, conhecimento jurídico e sem vaselina, consegui retirar o que o incomodava.

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Executado ou Pé de Pano?
Por Fábio Silva Cardoso (30ª VT de SP)


Eu tinha um mandado de penhora livre para cumprir num apartamento, mas o executado nunca estava e não retornava meu contato. Então resolvi chegar em um dia bem cedo no apartamento diligenciado e pedi para não ser anunciado na portaria. Assim, que bati na porta do apartamento eu ouvi uma voz masculina perguntando quem era. Identifiquei-me, mas a mesma voz ficou muda depois e quem abriu a porta era a esposa do executado. Expliquei a ela sobre o mandado e perguntei onde estava o executado. Ela me respondeu: "ele não está". Logo, perguntei em seguida: "então de quem era a voz masculina que me atendeu?". Ela respondeu: "a minha vida particular não te interessa". Aham tá! Era óbvio que era o executado. Adentrei no apartamento, ele continuou escondido, certifiquei que somente havia bens de médio padrão de vida e fui embora fingindo que acreditei na história do pé de pano.

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Tragicomédias de Família
Por Rogério Santos de Carvalho (54ª VT do TRT-2)

Sempre tenho dito que ser Oficial de Justiça é bom, mas tem lá seus percalços. Além da vulnerabilidade de ordem física que caminha a nosso lado o tempo todo, tem a questão da miséria humana com a qual temos de lidar quase todo o tempo. E onde mais se observa esse binômio é nas Varas de Família, onde militei por muitos anos, na Justiça Estadual do Rio de Janeiro, antes de vir para a Justiça do Trabalho.

Diz-se popularmente que se uma pessoa quer conhecer a outra que se case com ela; mas, se quiser realmente conhecê-la, separe-se dela. Há casos escabrosos, o que não é difícil imaginar, nos processos que tramitam nessas serventias, e o Oficial de Justiça nelas lotado é partícipe desses dramas, na linha de frente, combatendo no “terreno inimigo”. Poderia, aqui, enumerar vários casos dignos dos programas que passam nas TVs abertas todas as tardes, em que são esmiuçadas as ocorrências, mas eles são tão óbvios que não têm graça alguma. Então, vou apresentar dois episódios que reputo, no mínimo, curiosos. Apesar do aspecto trágico dos casos em si mesmos, apresentam uns traços de comédia. Vamos a eles:

O primeiro deu-se no bairro de Colégio, perto de Irajá, na zona norte do Rio de Janeiro. Tinha de cumprir um mandado de intimação em uma ação investigatória de paternidade, em que um cidadão deveria comparecer a um determinado local para fornecer material para o exame de DNA. Ora, estamos de acordo com o fato de que, geralmente, essas estripulias são cometidas por pessoas mais jovens. Pelo menos, era o que eu observava na maioria dos casos similares. Pois bem, cheguei à humilde casa, típica de subúrbio, com quintal, varanda e a porta da frente com aquela portinhola, em que a pessoa abre para ver quem está chamando, ou, então, dar uma sacada na movimentação da rua. Assim que estacionei o carro, em frente à casa, observei uma senhorinha que aparentava uns setenta e poucos anos, varrendo o quintal. Nesses casos de família, manda a boa técnica, baseada no bom senso, não ir logo se apresentando e falando do que se trata, mas admito que cometi um erro primário. Procurei saber junto à idosa se ali morava o Fulano. Ela, desconfiada, confirmou, e eu lhe perguntei (aí entra a gafe): “É seu filho, seu neto?”. Nisso, observo uma movimentação na varandinha, de onde saiu um senhor, também lá com seus setenta anos, que posso descrever como um típico cafajeste, tanto pela indumentária quanto pelo linguajar e comportamento: cabeleira desgrenhada, mal tingida, camisa aberta, barrigão à mostra, cheio de cordões e guias, tatuagens tipo “made in cadeia”. Andava gingando e só falava gírias típicas de malandro das antigas. Veio em minha direção, interrompendo o meu diálogo com a referida senhora, com aquele sinal característico de passar as unhas das mãos no peito, com a mão em forma de concha, como quem diz: “Sujou!”. Sinalizou para que eu descesse a rua e esperasse por ele lá embaixo. Num lugar mais “limpeza”, presumi. Desci e esperei. Ele veio em seguida, já falando: “Coé, cumpadi! Tás a fim de me fuder? Cumé que tu vai abrindo a parada assim pra minha coroa?” Percebi, então, que a senhorinha se tratava da esposa dele, e ele era o investigado, o velhinho arteiro. E continuou: “Pô, mermão, minha coroinha é foda! Ela dá geral na minha carteira, mas eu tô ligado, manja só.” Exibiu o contracheque de aposentado, onde já constavam dois descontos de pensões alimentícias, “caprichosamente” cobertos com liquid paper... E a “coroinha” não percebia a grotesca fraude, pobrezinha. E arrematou: “Eu é que dichavo a parada, maloco o flagrante... e agora vem essa mina querer me dar outra foda. Falei pra ela tirar o neném, liberei até a grana pro aborto, mas ela me deu uma volta. Pô, xará, assim a firma quebra. Num ‘guento’ mais pagar pensão não, morou? E tem mais o seguinte: quando encontrar com ela, vou dar de mão nela, tá sabendo? É muita vacilação, cumpadi”. Em seguida, virou-se para mim, passou a mão sobre meu ombro e disse, mais calmo: “Leva a mal não, doutor, é que eu sou safado mermo...”. Ainda bem que ele reconhecia: era muito safado! Recebeu a intimação, assinou e seguiu rua abaixo, gingando, todo serelepe e pimpão. Quando voltei ao carro, a senhorinha, que permanecera no mesmo lugar, perguntou-me o que eu fora fazer ali, afinal, e que não estava entendendo nada. Quando eu cometi o segundo erro, desta feita de propósito: “Pergunta a seu marido que ele lhe explica tudo direitinho. Ele tem novidades.” Ou seja, deixei a bomba e saí em disparada para não ouvir o estrondo. Às vezes, bate um sadismo, uma ruindade, um vergonhoso prazer em ver o circo pegar fogo, diante de uma sacanagem descarada como aquela.

O outro “causo” se passou no bairro de Bento Ribeiro, próximo à rua onde viveu e cresceu o Ronaldo Fenômeno. Fui cumprir ali um mandado de citação de um casal em uma ação de alimentos movida por seu filho. Estranhei porque era incomum filho adulto pedir pensão aos pais, mas o que me chamou a atenção foi uma circunstância insólita. Lia-se, na petição inicial que instruía o mandado, o texto que dizia mais ou menos assim: “Fulano de Tal, brasileiro, solteiro, autônomo, etc. etc. vem pedir alimentos a seus pais, Beltrano e Sicrana, etc, etc, porquanto não tem como prover seu próprio sustento, uma vez que não recebe o suficiente em sua única atividade remunerada, o ‘mister divinatório do jogo de búzios’ etc etc...” Assinada por um advogado particular! Como é que um sujeito constitui um advogado particular - geralmente pago - para pedir pensão a seus pais por não trabalhar, e como um advogado se presta a um papel ridículo desses? Eu sei, eu sei, é um direito constitucional de todo cidadão buscar suas pretensões em juízo, mas, cá para nós, é ridículo, para dizer o mínimo. Aí eu fiquei curioso sobre qual seria a reação dos pais do sujeito. Chegando ao endereço, pude constatar que era uma casa portuguesa, com certeza. Coberta de azulejos, hortas, plantas, quintal, tudo simples, mas muito limpo e bem cuidado. Toquei a campainha e veio me atender uma senhorinha com sotaque carregado: “Pois não, senhoire!”. Aí, por uma evidente falha no caráter de minha pessoa, botei lenha na fogueira, falando secamente: “Dona Fulana, seu filho diz que não tem como se sustentar e está pedindo pensão alimentícia à senhora e ao seu esposo”. Assim, sem mover um músculo da face, já doido para ver qual seria a reação, que, na verdade, eu já sabia. E não deu outra: “Ai, Jisus, aquele macumbaeiro e ainda por cima biado, em bez de arrumaire um travalho quere tomaire nosso dinhairinho, ó sofrimento...” E virou-se em direção ao interior da casa, berrou, chamando o esposo: “Ó, Manéli!!! benha cá oubiri o que o moço está a dizeire!!!!” Nisso, veio o Seu Manuel, ajeitando as calças e arrastando os tamancos, fitando-me com olhar curioso, e eu repeti ao portuga tudo o que falara à senhorinha, com a mesma inflexão. O luso, enfurecido, vociferou, quase aos prantos: “Beja só, senhoire, eu travalhaei a bida intaira trás dum valcão de paedaria e aquele s’fado nunca m’ajudou. Acavou por biraire um biado e macumbaeiro, matando-nos de d’sgosto, e agora, no fim da nossa bida, ainda quere nos roubaire, o sacripanta”. Desolados, aceitaram a contrafé, mas negaram-se a exarar o “ciente”, sob a alegação de que “não bamos pagaire nada, ó pá!”. Me deu uma raiva daquele sujeito... Em vez de arranjar um serviço para se sustentar, preferia explorar seus pais idosos. Ora, que fizesse daquele “mister divinatório” um bico, sei lá, ou não cobrasse por esse “dom”, fizesse por caridade ou coisa que o valha. Isso não pode ser meio de vida. “Vai travalhaire, vagabundo”. Não sei se o juiz deu provimento àquele pedido infame, mas, se deu, é uma prova cabal de que a justiça é cega mesmo.

Essas lembranças me vêm à mente e, quando as conto, numa roda de amigos ou familiares, as pessoas riem bastante. Uns até acham que é invenção minha, mas quem é do ofício sabe que é a mais pura verdade.

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O caso do Beleguim
Por Francisco Antonio Vieira de Menezes (Oficial do TJCE)


- Eu me contentarei com uma boa morte. - Era assim que anunciava o Zé Bandeira, beleguim das antigas, em comarca distante, situada em mundinho no fim das cuecas, raparigueiro inconteste, no fim da função, quando pouco ou quase nada lhe restava de ilusões públicas.

- Mas hoje o cabra não há de me escapar. - Foi o que se ouviu do Zé Bandeira, naquele dia, desde cedo.

Tanto por tanto, era que políticos afamados por escondidelas, às espreitas da sorte jurídica de não se dar de frente com o Zé Bandeira, só por uma via escusa é que não havia de ser citado ou intimado.

Mas o fato mesmo é que o Zé Bandeira, beleguim, com rapariga fixa na Cohab, recebeu mandado judicial a ser cumprido sem delongas, e sabedor da esperteza e valentia do citando, armou-se de facão e se ajeitou para diligenciar.

De sacola em punho, apinhada de determinações judiciais, imbuiu-se no intento de localizar devedor de banco, e bem sabedor da perspicácia do indigitado, atrelou-se à cachaça.

Precisava de coragem. O homem era de fama. Não ia ser qualquer banco ou ordem judicial que lhe fizesse temer, sem uma força a mais. E a maior coragem haveria de vir do oficial de justiça, com a força da amargosa.

Que lhe esperasse a Maria, a rapariga na Cohab, mas naquele dia não descansava enquanto não encostasse o sujeito na parede. Alguma coisa de importância precisava ser feita naquela sua vida de analfabeto.

Era uma aporrinhação ter que dividir sua atividade de fotógrafo com atos da justiça, mas uma pensão haveria de deixar para a mãe dos seus filhos.

Pelo menos uma pensão para quem lhe suportara tantos anos de adultério. Era isso mesmo, e às vezes o homem precisa pensar na família, mas sem esquecer da rapariga que lhe dá alento de fim de vida. Era o que pensava.

E de uma ponta da cidade à outra, foi revezando uma intimação com uma terça de cachaça, e de facão na cintura, transitou por toda a manhã à procura do devedor, sem dele ter informação de paradeiro, sempre ouvindo dizer que por ali houvera estado, mas saíra e o rasto ainda estava quente.

Foi por ali, por acolá, mas nada do inadimplente. E prestes a se enfezar de vez, sentiu que chegava a hora do pirão. Embora a contragosto, com a testa azuada, betendo-lhe a fome, decidiu ir à casa da rapariga, na Cohab.

Era seu costume diligenciar a pé ou de bicicleta. Até porque os tempos eram outros e o ganho da justiça não lhe garantia o sustento. Fotógrafo de profissão e beleguim por imposição da família, deu no meio da vida por assumir rapariga e não mais lhe importava a censura alheira.

Às favas com as convenções sociais, pois quando se está fora do círculo da moral, as maledicências vão sendo suportadas com a mesma dinâmica com que os costumes vão se sedimentando, e o desdém de um ou outro não é suficiente para alterar o que nem sequer está escondido.

Ademais, naqueles tempos de exclusiva dominação paterna, ter uma rapariga era sinônimo de autoafirmação, em que pesem as exceções.

Mas a sua Maria deu-lhe por roer os contos de réis, e a azucrinar a paciência do beleguim com exigências de primeira mulher, justamente quando estava envolvido na diligência para encontrar aquele temível devedor de banco, acionado pela justiça.

A verdade era que o cabra não passava de um embromador, um tinhoso. Precisava pensar assim, para se encher de mais vontade e não desistir da busca.

Não sabia bem do que a ordem tratava. Tinha pouca leitura. Disseram no cartório que era dívida de banco, e que achasse o homem naquele mesmo dia, pois corria um boato que estava para dar no pé.

E a rapariga lhe exigindo presença no almoço.

A casa era distante e ainda tinha caixa para mais duas, e no caminho ainda poderia dar de cara com o inadimplente.

Aprumou-se em direção à Cohab, acomodou a sacola debaixo do sovaco, ajeitou o facão na cintura e quando se chegou perto de um bar, na ponte, viu lá dentro um vulto desaparecer na direção do banheiro.

Era o cabra!

Chegou pisando forte na soleira do batente, entrou, foi até o balcão e pediu uma terça de cachaça. Enquanto era servido, perguntou em voz baixa pelo homem. Mais uma vez ouviu que por ali houvera estado, mas já se fora. Se chegasse um tantinho topava com ele.

A cachaça ferveu-lhe a cabeça. Desembainhou o facão da cintura e disse, batendo-lhe o pano no balcão:

- Encontro o Izamar, hoje, nem que seja a última coisa que faço na vida. Pois me contento com uma boa morte.

O bramido do ferro estalou por todo o bar, e do banheiro lá se veio o citando, de olhos arregalados, para dizer:

- Não seja por isso, seu Zé Bandeira. Estou à disposição da justiça. Que estranheza é essa! Dá-me cá a citação.

Feita a citação, Zé Bandeira pode ir almoçar em paz com a rapariga.


Em homenagem, in memorian, ao Oficial de Justiça João Nogueira, da comarca de Independência, no Estado do Ceará.

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Os botões da blusa
Por Wagner Ambrosio (aposentado)


Nos mais de trinta anos em que fui Oficial de Justiça na Justiça do Trabalho, passei por quase todas as situações e perrengues possíveis e imagináveis, que geralmente costumamos presenciar no cotidiano de nossa árdua e penosa função.

Já penhorei imóvel de velhinhos que nada tinham a ver com a dívida de parentes , pois foram colocados no contrato social das empresas com participação de cinco por cento da sociedade, ouvindo com paciência e indignação seus relatos e o desconforto com a situação.

Já fui recebido por homens e mulheres em trajes sumários, já fui confundido com o carteiro, já me mandaram passar mais tarde, enfim...

O caso mais inusitado ocorreu há cerca de uns dez anos, se não me falha a memória, no cumprimento de um mandado de citação de uma senhora que aparentava cerca de uns 70 anos e que, aliás, morava a dois quarteirões da minha casa.

Para variar ela tinha orientado os porteiros do prédio no sentido de informar aos Oficiais de Justiça que a procuravam de que não estava presente. Depois de várias tentativas de encontrá-la, em dias, horários e humores diferentes, um dos porteiros me informou que ela estava claramente se escondendo e que, inclusive, nem mais atendia o interfone durante o dia.

Então,  tive a brilhante idéia de diligenciar depois das 20 horas porque ainda não conhecia o porteiro da noite e porque poderia pegá-la desprevenida no intervalo da novela, sendo certo que o mandado expressamente continha a autorização para cumprimento no período noturno. 

Ali chegando não me identifiquei como Oficial, dizendo para o porteiro apenas que tinha uma encomenda para entregar para referida senhora, moradora do apartamento 71, o que era verdadeiro.

Já estávamos às vésperas do recesso de fim de ano e não queria ficar com aquele mandado pendente de solução para o ano seguinte.

E não é que ela mordeu a isca? Mas quando soube do que se tratava sua encomenda, uma entidade maligna baixou de imediato e começaram todos aqueles elogios à Justiça, aos Juízes, ao Prefeito, Governador, Presidente da República, e, evidentemente, a mim.

Era um prédio de classe média, com cerca de quinze andares. O escândalo foi de tamanha intensidade, que metade dos moradores desceu para ver o que estava acontecendo. Estava até esperando a Record e o SBT transmitirem ao vivo e em cadeia nacional.

Minha sorte - e nada acontece por acaso - foi haver várias testemunhas entre moradores e funcionários acompanhando os acontecimentos.

Depois de ler o mandado, de saber qual era o processo da vez, o valor da execução e quem era a executante, tudo acompanhado de palavrões e xingamentos, ela lembrou-se de pedir a minha identificação. Prontamente saquei  minha carteira funcional da pasta, que foi expedida em 1982,   e a apresentei. Porém a foto do documento era de um jovem de 22 anos, cara de bebê, sendo que no dia dos fatos eu já tinha mais de 50 anos.

Ela simplesmente arrancou a carteira da minha mão e desconfiou que o documento fosse falso, porque a foto não batia com a minha fisionomia atual (não que tenha mudado tanto assim depois de quase 30 anos) e não queria me devolver de forma alguma, não obstante haver pedido para que  o fizesse por várias vezes, calmamente, mas ardendo por dentro.

Nessa altura dos acontecimentos, ainda contava com a platéia de uns cinco ou seis moradores e dois funcionários que não tinham se cansado das cenas deprimentes. Estavam claramente torcendo para o circo pegar fogo e para que eu pulasse no pescoço dela.

Depois de vários pedidos para que me devolvesse a carteira, num momento de distração, resgatei suavemente o documento de suas mãos e guardei na pasta. Mas ela o segurava tão forte para defender o tesouro que tinha conquistado, que, na rapidez do movimento para mantê-lo em suas mãos, um botão de sua blusa se abriu, deixando a mostra seus lindos seios, compatíveis com os de uma senhora com mais de 70 anos.

Não preciso nem dizer o quanto este fato piorou as coisas. Começou a berrar num volume ainda mais alto,  semelhante ao rompimento de uma usina nuclear, abriu os demais botões da blusa, desfilou e gritou por um imenso corredor até o portão de entrada do prédio, sacudindo o mandado que foi elevado acima se sua cabeça para que todos o vissem e se compadecessem com sua situação de senhora humilhada : “Olha o que ele me fez ! Vejam isto! Todas as janelas estavam ocupadas por, no mínimo, duas cabeças em cada uma para apreciar as cenas dignas de um filme de baixíssima qualidade.

Em seguida, pediu uma caneta emprestada ao porteiro e começou a escrever uma longa e triste narrativa de recebimento do mandado com indignação, com os mais  profundos protestos, não obstante havê-la advertido de que nada poderia ser escrito no mandado e que quaisquer alegações poderiam ser feitas ao Juiz, mas somente através de petição. Por um instante pensei em pegar o mandado e a caneta, mas fiquei receoso de que a situação neste caso só pioraria. Mantive a calma.

Quando ela me devolveu o mandado e, finalmente, achando que estava livre para voltar para casa e jantar com minha família, entreguei a ela a cópia que ela escreveu e fiquei com a outra, momento em que ela, ainda mais furiosa, a picou em mil pedacinhos,  jogando-os para o alto, espalhando os fragmentos por toda a extensão do jardim.

Voltei para o conforto do meu lar com a clara convicção de que ia dar merda. Fui convencido pela minha esposa, que também era Oficial de Justiça, a tomar uma taça de vinho e relaxar.

Além da sorte que tive de várias pessoas haverem presenciado os fatos, o que ajudou bastante foi haver detalhado, com todo o cuidado necessário, tudo o que ocorreu na certidão de devolução do mandado. Ele nunca voltou para penhora.

Chegou o recesso de fim de ano. Na volta ao trabalho fui informado pelo Chefe de que tinha algumas surpresas. Algumas já esperadas e outras nem tanto.

Ela foi à Ouvidoria e Corregedoria do Tribunal solicitar uma representação contra mim e também à Delegacia de Polícia do bairro relatar que havia sido agredida por um Oficial de Justiça, e que, pasmem, o mesmo tinha lhe arrancado a blusa com força, deixando seus seios à mostra na frente de vizinhos e funcionários. Sindicância e inquérito policial abertos.

Depois de um longo processo de sindicância, juntada de documentos, oitiva de testemunhas, sendo que ela levou todos os porteiros do prédio, inclusive os que não estavam presentes no dia dos fatos, finalmente chegou a hora de seu depoimento.

Perguntada pelo meu advogado se ela tinha sido por mim agredida, na maior cara de pau e com a frieza de uma serpente, a mesma responde que não tinha ocorrido necessariamente uma agressão. Olhando bem nos meus olhos, eu estava sentado frente a frente ela diz: “Fui dar queixa na delegacia para que este sujeito nunca mais se atreva a me incomodar altas horas da noite”.

Os funcionários do prédio que estavam presentes na hora dos acontecimentos informaram aos encarregados de apurar os fatos que a doce senhora era habituada a agredir verbalmente outros Oficiais de Justiça, inclusive das áreas Cível e da Fazenda Pública que ali tiveram a sorte de encontrá-la e que se cansaram das vezes que tiveram que recolher mandados picados. Os demais funcionários disseram que não estavam presentes na hora dos fatos e foram dispensados para voltar ao trabalho.

Os colegas que presidiram e conduziram a sindicância concluíram que não havia motivos que resultassem em qualquer penalidade e opinaram pelo seu arquivamento. O inquérito policial também foi arquivado por falta de interesse da “vítima” em dar prosseguimento. Fiquei conhecido como o tarado do sutiã e alguns colegas cantavam aquela velha canção do Roberto Carlos quando me encontravam. “Os botões da blusa, que você usava...”

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Osvaldo Barmelli
Por Ane Galardi (aposentada)


Era uma, depois duas, três, vinte, quarenta ou mais intimações que entreguei em seu endereço, sempre em nome do Espólio de Osvaldo Barmelli * e sempre quem recebia era a empregada da residência, que trabalhava ali há mais de trinta anos, Dona Irma *.

Em uma única ocasião, das dezenas de vezes em que ali estive, conheci a viúva, uma senhora bonita, muito bem arrumada, com classe.

Claro que depois de comparecer ao local inúmeras vezes, mesmo como Oficial de Justiça, não há como não estabelecer um relacionamento mais próximo, e assim foi que a Dona Irma começou a me servir um pedaço de bolo com café, uma água gelada nos dias quentes ou um suco, já me dava beijos e desejava que Deus me acompanhasse.

Por algumas vezes ela me disse que a situação estava bem difícil para a viúva e filhos, que eram três moços bem bonitos, dois adolescentes e um adulto. Estavam perdendo tudo de herança com as ações que tinham que pagar da empresa do pai falecido.

Em um dia chuvoso, a Dona Irma me ofereceu um pedaço de bolo de laranja ainda quente, com café, e foi aí que ela me contou o que aconteceu. Disse que um dia todos os cinco familiares tomaram café da manhã, os meninos saíram para a escola, o Sr. Osvaldo estava já arrumado para o trabalho, vestindo um terno, e despediu de sua esposa dizendo que a amava muito. Ela também saiu para trabalhar. Passados alguns minutos ele voltou, avisou a Dona Irma que não estava se sentindo muito bem e que ficaria no quarto. Ela disse que ele se trocou, colocou uma bermuda, camiseta, tomou uma água e foi para o quarto. Decorridos alguns minutos ela ouviu o tiro. Quando chegou ao quarto ele já estava morto, havia cometido suicídio. Segundo ela, preparou o local com sacos plásticos, não deixando uma gota de sangue no chão ou paredes. Ela chorou e eu chorei. A empresa havia quebrado e ele não sabia como sair daquela situação.

*Nomes fictícios

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Levante-se por favor!
Por Miriam Barbosa Dias (CIAO Santos)


Essa minha diligência virou uma lenda...rs

Era o ano de  2001, eu tinha um mandado de penhora livre em bens dentro de uma residência.Várias e frustradas tentativas de atendimento no local e nada! 

Uma bela tarde, esta Oficial q vos escreve, resolve ir em outro horário: lá pelas 14 horas...

No sistema de interfonia, a pessoa diz que o executado se encontra..para eu subir! Vivaaaa! Até que enfim..

Entrando no apartamento, bem simples, eu já avaliando  mentalmente os bens ali na sala...( todo Oficial de Justiça sabe como é...rs) e sabendo que a penhora não iria cobrir a execuçâo..aguardo o executado.

Minutos depois, vem a empregada da casa...e me avisa: o senhor Fulano de Tal encontra-se dormindo...ah nâoooo! Dias e dias para essa diligência e o cara estava dormindo?

Na mesma hora eu para a empregada da casa: ah é? Jura?  Pois eu NÃO ...estou aqui trabalhando e pode pedir para ele me atender agora! Nisso a moça TENTA me avisar algo: mas eu na minha impaciência: Vamos  menina chame lá seu patrão que eu não tenho o dia todo não!

AH se eu soubesse: vem um SENHOR de cerca de uns 80 anos...sem AS DUAS pernas...em uma cadeira de rodas...com soro no braço! Eu...queria UM BURACO no meio da sala para me enfiar! Fiquei muito constrangida...maaaas já que já tinha acordado o senhor...expliquei o teor do mandado...dizendo que não faria aquela penhora pelo elevador valor e não ter bens ali suficientes...

Terminei meu serviço um pouco chocada pelo que SEM QUERER fui obrigada a fazer!

Na saída, a empregada ainda me fala: eu tentei avisar a senhora da condição dele! Pois é...ela tentou! Eu que não dei ouvidos

Em tempo: muitooos anos depois soube que este senhor havia falecido...era um ex proprietário de um bar  bem conhecido na cidade que faliu perdendo tudo, a saúde inclusive! 

Casou-se com AQUELA empregada que me atendeu E a MESMA empregada que questionou minha atitude colocou ele na rua! Sem dó nem piedade! Eu tive dó de acordar um moribundo para fazer o meu serviço...mas a moça não teve a menor compaixão de jogá-lo na rua!

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O dia em que o Oficial virou a diversão do bar
Por Maurício Passos Bahia (1ª VT Diadema)


Era uma bela tarde de um dia bem produtivo. Faltavam poucos mandados para cumprir e me deparei com uma citação a ser feita em uma rua aparentemente tranquila, mas que nunca tinha entrado. Estacionei, olhei em volta e pensei: crianças na rua, gente descontraída em um bar na frente da casa; parece tranquilo, esse mandado vai ser mamão com açúcar...

Cheguei na casa e toquei a campainha. Clima agradável, carros passando, eu olhando em volta preocupado com minha segurança quando ouvi bem longe um grito feminino: “Já vai”. 

Ufa, pensei, deve ser a reclamada, vai ser fácil e rápido. Mas fico atento ao redor, quem é oficial vai me entender.De repente olho pra aquele bar na frente da casa e vejo algumas pessoas me olhando. Parece que estavam rindo para mim, ou será rindo de mim? Querem me intimidar, concluí. Fiquei encucado.

Cadê essa mulher que disse que já vinha e não veio? Vou tocar novamente. 

Dessa vez mais atento, toquei de novo a campainha e ouvi a mesma voz respondendo: “Já vai”. Só que dessa vez achei alguma coisa estranha, a voz era muito estridente, incomum, resolvi tocar de novo e de novo: o “Já vai” se repetia, enquanto minha plateia do bar ficava ainda mais empolgada. 

Como dizia Raul, “no auge da minha agonia”, eu todo atrapalhado, cheio de pensamentos conflitantes, finalmente tive um estalo e, sem querer acreditar, concluí: era um papagaio. 

Fdp do car..., pensei eu. Que papagaio mais escroto.

Saí pro carro rindo de mim mesmo procurando um buraco para enfiar a cabeça. Sabe depois da queda o coice? Pois é, agora entendi o motivo das risadas da galera no bar, que me olhava e ria, mas ria de verdade, quase apontando o dedo pra mim. Nada de intimidador, apenas gozação; e eu morrendo de vergonha querendo sair dali o mais rápido possível. 

Retornei por volta das 19:30h e, enfim, encontrei a bendita destinatária. Lhe falei: estive aqui à tarde, ela me interrompeu e complementou “mas não tinha ninguém para te receber né, que pena.” Eu falei: tinha sim, seu papagaio me recebeu muito bem!

Percebi que ficou toda envergonhada, me pediu mil desculpas; tentou, tentou, mas no fim não conseguiu segurar a gargalhada... ficou vermelha de tanto rir e terminamos rindo juntos. 

Já tinha visto gente chorando ao receber um mandado, mas chorar de rir foi a primeira vez.

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Vida de cachorro?
Por Marcelo de Castro Costa (TJPE)


Dei esse título, “VIDA DE CACHORRO”, porque após esse dia de trabalho passei a refletir sobre os encontros e desencontros da vida. Esse fato realmente aconteceu, foi em 2003, mais precisamente no dia seguinte ao jogo entres Santa Cruz x Sport, quando este último foi campeão pernambucano. 

E foi assim: segui o roteiro de visitas previamente preparado, e me dirigi para a cidade de Camaragibe, onde efetuei uma citação. De lá, fui para o bairro da Várzea, em Recife, onde deixei uma intimação para ciência de uma sentença. Como quebra de rotina, fui recebido por um cachorro da raça poodle, que estava vestido com uma “cãomisa” do Sport, comemorando entre latidos, grunhidos e balançar de cauda, o 34º campeonato levando pelo Sport Clube do Recife, para felicidade da fiel, rubro-negra, torcida.

De lá dando continuidade ao roteiro segui para o Casarão de Roda de Fogo, na Rua Panteon, nome bonito, mas uma verdadeira favela. Conglomerados de barracos, entrecortados por becos estreitos que apenas davam passagem para uma pessoa, sem contar, que o chão do beco no sentido longitudinal, corre um esgoto a céu aberto. Andar por ali, só com as pernas abertas, ou seja, com os pés nas margens direta e esquerda da vala.

Perguntando a um e a outro, cheguei na “residência” procurada. Tratava-se de um barraco com pouco mais de 2m, todo encravados de tábuas e latas, com o teto variando em cacos de telhas de amianto, compensado e plásticos pretos, desse usados pela prefeitura, para contenção de encosta.

Fui recebido por uma Senhora, mãe da citanda, que me convidou a entrar na sua “casa”, e me acomodou em uma cadeira. O espaço era tão pequeno que mal me cabia. Em poucas palavras, expliquei o motivo da mina presença, era um mandado de suspensão de poder familiar, contra sua filha, tendo como autor o Ministério Público. A interlocutora apesar de pouco estudo, compreendeu o que se tratava, verbalizando o seguinte:

- Que morava há mais de 20 anos com seu companheiro, do qual tem uma filha adolescente com 15 anos. O companheiro é alcoólico, e quando embriagado, põe a mesma de “casa pra fora”, com ameaça de agressão.  A minha ouvinte não trabalha, vive em extrema necessidade, é cardíaca, mas mesmo assim, verbalizou que ficaria com as crianças, embora figure como requerente do abrigamento dos netos.

Pude observar, logo na entrada do barraco, uma panela sobre o fogo de lenha apoiada em tijolos, onde cozinhava feijão na água e sal, seria o almoço daquele dia. A “casa”, não tinha banheiro, sendo “chão batido”. Tem duas camas precárias uma sobre tijolos e a outra pendurada, disse que é para se proteger dos ratos que transitam pelo barraco a noite.

Realmente a higiene é zero, o barraco nem banheiro tem. As necessidades fisiológicas, são feitas em latas ou garrafas pet cortada ao meio e jogada fora, após o uso. Banho só de “cuia” com uma bacia no meio do quarto/sala, como é de chão batido a água do banho se infiltra pelo chão. Narrou a senhora! Me Deus! Que vida!

O local tem uma “boca de fumo”. Paradoxalmente a entrada da favela fica em frente a um núcleo da Polícia Militar de Pernambuco. Pude visualizar crianças na faixa de 13 a 17 anos, com mochila de papel, vendendo os chamados “dólar” de maconha, e, também crianças comprando. Percebi que estava sendo observado por alguns homens, talvez dando proteção ao “aviõezinhos”. Olhavam-me desconfiados. Corremos muitos riscos no cumprimento da nossa função.

Observou a interlocutora, que às 17:00 h, o local fica muito esquisito, onde todos fecham suas portas e não saem de casa. É comum escutar tiros, mas ninguém se assusta, já estão acostumados.

Sua filha, de outro relacionamento, mãe das crianças abrigadas, quem na verdade eu procurava, chegou de repente, estava sem ver a mãe há 4 meses, lhe pus a par da minha visita, verbalizou estar desempregada, tem um companheiro também desempregado. 

Disse que não tem ido visitar os filhos, que se encontram abrigados na FUNDAC, por não ter dinheiro para a passagem de ônibus, e nem tem como sustentá-los, é melhor ficarem onde estão!

A filha adolescente que não quer saber dos estudos, indagada sobre ir a aula, disse, nem lembrar o que é isso! Segundo a mãe ela prefere “bater” pernas pela favela, a estudar ou fazer alguma coisa produtiva.

Perguntei se tinham alguma religião ou se frequentavam alguma denominação religiosa, disseram que não. Que só acreditavam em Deus, mudando logo de assunto. Agradeci a cooperação na diligência e me pus a caminho, muito triste pelos fatos que testemunhei e sem nada fazer.

Esse foi o quadro que encontrei naquele meu dia de trabalho, não é muito diferente dos demais, mas confesso que fiquei realmente penalizado, sentindo-me impotente por não poder fazer nada por aquelas pessoas que têm a auto estima tão arrasada e se encontram no fundo do poço, sem ninguém que olhe ou interceda por elas. A quem atribuir culpa! É duro saber que milhões de brasileiros vivem assim. Para que tantas ONGS! E o Projeto Fome Zero, o que é feito dele? E a Constituição que garante aos brasileiro vida digna e moradia? O que cada um de nós enquanto cidadãos, podemos fazer para contribuir com a transformação desse quadro de carência e miséria que assolam os menos favorecidos? 

Nesse mesmo dia, fui na repartição e narrei tudo para as minhas colegas que ouviram silenciosamente algumas até choraram. 

No dia seguinte ao chegar na repartição encontrei sacos e mais sacos de roupas de todo tipo, cama, mesa, vestir etc..... Além de caixas de alimentos, foi um trabalho, mas retornei na casa daquela senhorinha, que chorava ao receber cada donativo que lhe ofertamos. Imaginem a minha e felicidade e a dela.

Votando ao cachorrinho “poodle”, aquilo que é vida! Casa, carinho, comida, roupa lavada, torcedor do Sport Clube do Recife, enfim, com seus diretos “cãonstitucionais” assegurados!!! E nós, somos ou não afortunados?

Ah! E tem gente que pensa que leva vida de cachorro. Duvido muito! Será?

Acredito que em muitos lares, faltam o cultivo de valores religiosos e fé em Deus!

Reflitam!

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Debaixo de Vara
Por Wagner Ambrosio (aposentado)


Nas Ordenações Filipinas, os oficiais de justiça podiam conduzir testemunhas e réus recalcitrantes “debaixo de vara”, isto é, à força. No antigo direito português, a vara era a insígnia dos juízes ordinários e dos juízes de fora. Era o símbolo de sua autoridade:

O  art. 95 do Código de Processo Criminal do Império, de 1832, dizia: Art. 95. As testemunhas, que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara, e sofrerão a pena de desobediência

Nos dias atuais as testemunhas que não comparecem às audiências sem motivo justificado são conduzidas para a próxima audiência por Oficiais de Justiça, que através de prévio agendamento, as buscam em suas residências e as conduzem até a sede do Juízo, geralmente nos seus próprios veículos.

Sabendo desta mordomia, alguns advogados que têm interesse em que a primeira audiência seja adiada, orientam suas testemunhas a não comparecerem e ainda esclarecem para ficarem tranquilos porque em breve (geralmente depois de uns seis meses) um Oficial irá buscá-las e as levará para serem ouvidas.

Me cansei das vezes em que testemunhas se acomodaram confortavelmente no meu carro, pediram para desligar o ar condicionado, reclamaram do trajeto escolhido e, até mesmo, pediram para trocar de estação de rádio.

Me lembro de uma testemunha em especial, um alto executivo de uma empresa multinacional que foi por mim conduzida para prestar depoimentos numa Vara do Trabalho no Fórum Rui Barbosa. 

Logo de início fui indagado do motivo pelo qual eu não estava usando terno (deve assistir muita novela da Globo), depois foi o tempo todo, confortavelmente sentado no banco de trás e lendo as principais noticias dos jornais, reclamando de tudo, e pediu para que eu baixasse o som do rádio – e olha que só ouço música boa – Eita cara chato!.

Nesta hora tive muita inveja dos colegas da época do império. Ah se eu tivesse uma Vara...

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A mulher difícil
Por Miriam Barbosa Dias (CIAO Santos)


Por volta do ano de 2003...era lotada na 1ª Vara de Santos SP quando caiu um mandado de intimação de cálculos em nome de uma pessoa física, em uma casa, na minha área de atuação.

Para cumprir esse mandado fui dia e noite e simplesmente não achava a tal mulher em casa, até que fui tarde da noite e achei a mulher em casa...que leu..releu..o mandado umas 200 vezes..levando uns 45 minutos até assinar um simples mandado.

E essa epopéia se repetiu em TODAS as fases do processo..a má vontade..os xingamentos proferidos a mim...minha genitora e mais todos impropérios  a que todo Oficial de Justiça está para lá de acostumado... e mais: a mulher teve a pachorra de me dizer que não atendia a porta pois podiam ser pedintes...rs

Uma bela noite em outro mandado para esta mesma mulher...a Oficial que vos escreve foi ao local com outro mandado...e toca a campainha, bate palma....buzina...coloca os faróis do carro na residência e NADA!

Tais procedimentos eu repeti à exaustão...e nada de encontrar ninguém.

Nós fazíamos plantões semanais nas Varas: e ouço da mesa dos oficiais ...o atendente do balcão falando com o advogado sobre o tal processo da fulana...

Eu mais que depressa levantei e fui falando para o advogado: olha doutor...IMPOSSÍVEL citar aquela mulher..já fui de dia...de manhã..de madrugada..vários dias ...e NADA! NINGUÉM me atende...

Aí o advogado me fala: não ...mas eu vim aqui pois vi seus bilhetes no jardim Oficial Miriam...para informar q a Dona Fulana de Tal foi encontrada MORTA dentro de casa há mais de 20 dias...por isso você nâo conseguia encontrá-la...bom ainda bem que ninguém veio me atender nesse período ( pensei eu).

A Secretaria ficou uns três meses tirando sarro de mim.. Eu queria citar a morta! Cruzes! 

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Auto análise
Por Ane Galardi (aposentada)


O Porteiro do edifício disse que era para eu subir ao apartamento do Sr. Eduardo. Isso não é muito comum no nosso ofício, pois as pessoas preferem descer para nos atender, mas nunca sabemos se a pessoa está com algum problema de locomoção, se é muito idoso, bom, lá fui eu.

Ao chegar ao apartamento, era uma pessoa de uns 40 anos, educado, muito bem arrumado. Entreguei a ele a citação, ele leu, assinou o recebimento, olhou para mim e disse: “Sabe de quem é a culpa disso?”

Eu, escoladíssima com a argumentação dos devedores, já pensei “sei, sim, do seu sócio canalha que te passou a perna e ficou com a melhor”, “sua ex-esposa que era sua sócia e sabia do caixa 2 e ameaçou denunciá-lo à Receita Federal”, “o empregado sem caráter que estava te roubando”...

De repente, para a minha enorme surpresa, ele disse: “a culpa é toda minha!”

Como? O sr. está bem? Alucinou? Quer que eu chame a ambulância?

E ele continuou: “olha, eu não sirvo para ser empresário, sou péssimo nisso, e agora tenho que aguentar as consequências.”

Quase dei um beijo nele, mas me contive e elogiei a sinceridade: “Parabéns, daqui para a frente, assim que o senhor se livrar dessas pendências, sua vida será ótima, pois o senhor saberá onde deve ou não pisar. Tudo dará certo!”

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Gulliver
Por Rogério Santos de Carvalho (54ª VT/SP)

Naquela manhã fria de inverno, este carioca radicado parcialmente em São Paulo caminhava pelo lado do sol da Rua Joaquim Floriano para cumprir mais um mandado de penhora. Confesso que mesmo depois de vinte anos no mister de Oficial de Justiça, nos quais militei a maior parte do tempo nas varas cíveis, de família e criminais da justiça estadual, em que os mandados ditos mais complicados são cumpridos, nada me constrange mais do que um mandado de penhora, carro-chefe da justiça do trabalho. Entrar na casa dos outros, vasculhar garagens, fábricas e demais estabelecimentos, avaliar um bem mesmo sem expertise para tal, convenhamos, é muito chato.

E aquele mandado foi especialmente chato. Era para penhorar um veículo do sócio da claudicante empresa de brinquedos Gulliver, aquela mesmo do Forte Apache da minha infância e que recentemente entrou com pedido de recuperação judicial. Era um brinquedo símbolo de status. Quem o possuía era popular entre a molecada, o que não era o meu caso, posto que muito caro e meus pais não tinham a mínima condição de me dar, obrigando-me a filar dos meus primos e amigos. Aquilo era constrangedor. Eu queria tanto um daqueles, com cavalinhos, índios, o General Custer mandando bala nos pele-vermelhas, naquele genocídio romantizado, que a inocência e ignorância da história nos faziam achar tudo tão lindo e heroico. Anos mais tarde, vieram aos caminhões mini-basculantes e outros brinquedos da marca, estes sim eu comprei com certa facilidade, livrando minhas crianças do vexame de bater da casa de amiguinhos para brincarem. Já nesses tempos, os Forte-Apaches não eram mais moda. Ainda bem.

Quando ao mandado em si, o sócio destinatário era um homem de cerca de quarenta anos, com a depressão estampada no semblante, o qual desceu e me recebeu na portaria do prédio. Disse que o carro não estaria lá. Eu disse a ele que precisaria olhar a garagem. Ele relutou, e eu disse que seria melhor que permitisse a entrada senão chamaria a polícia, aquelas coisas chatas que somos obrigados a falar. Entrei vi o carro. Ele disse que era da irmã. Pedi os documentos e ele não os apresentou. Chatices de praxe. Penhorei assim mesmo aquele Ecosport de uns dez anos de uso. Carro velho para o dono do Gulliver.

Qual o conflito desta narrativa que retrata uma diligência tão prosaica na rotina do meirinho? Pouco ou quase nenhum, exceto a constatação in loco da iminente bancarrota de uma empresa tão emblemática e significativa na minha vida, e certamente de muitos de minha geração.

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Essa é de deixar qualquer um maluco
Por Valdecir Celestino


Acho que as crônicas aqui contadas remetem um pouco à loucura e ao medo a que somos expostos todos os dias. A primeira delas aconteceu com duas colegas Oficialas de Justiça da mesma vara em que eu estava lotado.  Vou omitir os nomes.  As duas já se aposentaram. A mais antiga no cargo não dirigia, e quando as diligências eram mais distantes, inclusive em área rural, a mais nova dirigia, e uma fazia companhia para a outra, trabalhando em dupla. Uma delas, já afetada pelo stress laboral do dia a dia, vinha fazendo terapia para aguentar a barra. E em uma dessas consultas,  o médico a aconselhou: “Olha, quando estiver muito estressada, tira os sapatos, pisa na terra, abraça uma árvore, você vai se sentir melhor”. Em um determinado dia, em uma semana chuvosa, lá iam as duas por uma estradinha de terra lá pros lados de Xororó da Serra, quando o carro encalhou naquele local ermo, no meio do mato, e não tinha meio de sair do lugar. Foi aí que o pior aconteceu. A colega, em um arroubo, saiu do carro, atirou a chave o mais longe que conseguiu, tirou os sapatos e entrou para o meio da floresta, deixando a outra sozinha. Quando achou uma árvore bem legal, se atarracou nela. Acontece que tinha ali um enxame de marimbondos, que para acabar de lascar, veio para cima dela, que voltou correndo para o carro. Foi aí que passava um senhor, e perguntou o que estava acontecendo. A outra  explicou que não conseguiam tirar o carro, que estava encalhado. Ele ofereceu ajuda e pediu a chave. Que chave? Quando soube da estória toda, perguntou onde ela tinha jogado, saiu a procurá-la, e por sorte a achou, e logo depois conseguiu tirar o carro do local. Mais tarde elas chegaram contando o que aconteceu e, no final, tudo acabou bem.

No segundo “causo” eu estava presente. O colega Ricardo Lemos, com dificuldades para citar um executado, resolveu ir em um final de semana, porém como o bairro era perigoso, lá na periferia da periferia, pediu que eu fosse com ele. Em um domingo de manhã estávamos eu e ele batendo palmas na porta do executado, porém ninguém atendia. A moradora da casa em frente informou que podíamos insistir, que ele havia ficado com o boteco aberto até de madrugada, estava dormindo, mas estava em casa. A partir daí Ricardo começou a gritar o nome do executado. Logo depois, percebi que o papagaio daquela senhora da casa em frente também estava esgoelando o nome do executado e achei engraçado. Depois de um tempo, o dito cujo desceu para nos atender, e no exato momento em que Ricardo deu a ele ciência do valor a ser pago, o maledetto do papagaio começou a gritar: Crau, crau, crau, crau, crau, crau.....  música que tocava o dia todo na nossa rica programação cultural radiofônica, mas que traduziu direitinho a situação em que o sujeito se encontrava. Foi aí que fui pego por meu momento de loucura, não me aguentei. Sofri uma crise de riso incontida na frente do executado, e logo saímos de lá, felizes por termos conseguido citá-lo.  O referido é verdade e dou fé.

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Déjà vu
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Aos que pretendem ser Oficial de Justiça, tenham uma coisa em mente: um dia nunca será igual ao outro. Lidar sempre com o inesperado: essa é a única certeza que temos ao começar um novo dia.
 E, por incrível que pareça, nossa vida pessoal pode se misturar com a profissional, como aconteceu comigo.
 Mas essa história começou há algumas décadas atrás, quando eu colhia as flores da juventude e as espalhava com charme, beleza, graça e perfume por onde quer que passasse. Eu tinha aproximadamente 16 anos e frequentava um grupo de estudos filosóficos e me encantei por um rapaz que tinha tudo para ser um príncipe encantado moderno: era loiro, tinha lindos olhos azuis, alto, falava muito bem e tinha até carro. Ele se aproximou de mim e me envolveu com sua conversa amistosa e cheia de encantamento pela vida, lembro-me como se fosse hoje dele dizendo que tinha 23 anos, que era em-pre-sá-ri-o -- sempre fazia questão de estufar o peito, engrossar a voz e dizer orgulhosamente que era empresário -- e que trabalhava com o pai. Bem, o romance durou pouco tempo porque percebi que ele tinha muita lábia, mas quando eu perguntava sobre os negócios da família, ele desconversava, além do que ele até podia ter tudo, mas não tinha "a pegada", então achei melhor por a fila prá andar.
 Pois bem, os anos se passaram e me tornei Oficial de Justiça. Começo mais um dia com a pasta cheia de diligências para cumprir o quanto antes durante o período da manhã, pois estou no Plantão Individual e terei que me dirigir à Central de Mandados às 13h para retirar e cumprir os mandados urgentes. Passada a primeira parte do dia, sigo para o Fórum, engulo um enroladinho de queijo e presunto no boteco da Marquês de São Vicente e corro para a Central.
 Recebo duas missões, sendo um Mandado de Condução Coercitiva de uma testemunha e uma Citação Inicial para audiência dali há 6 dias úteis, as chamadas urgências urgentíssimas.

Primeiro fui até a casa da testemunha. Lugar distante, me perdi no caminho, pois sempre me confundo com as saídas da Marginal e fui parar em Osasco. Nada que uma boa música da "Hora da Vitrola" não possa acalmar meus ânimos. “Que lugar horrível esse, como alguém pode viver assim?” -- penso eu, mas pelo menos encontrei a testemunha. Explico a situação e pergunto o por quê de ela não ter ido à primeira audiência. Ela me responde com muita naturalidade:
 - Sabe o que é, Dona, foi o meu Advogado que me orientou a não ir na audiência.
 - Como assim? - perguntei-lhe perplexa.
 - Ele me disse que, como eu moro muito longe e não tenho dinheiro para a condução, se eu não fosse na primeira audiência, na próxima viria um Oficial de Justiça de carro me buscar em casa!
 - Sim, claro, e é prá isso que eu estou aqui! - respondi abaixando a cabeça.
 Mas o bom é ser Oficial de Justiça é que sempre há a oportunidade de virar a página e partir para a próxima.
 Assim, lembro-me da Citação Inicial que havia recebido e que também era urgente. Observo que se trata de uma banca de jornal localizada em uma avenida conhecida e movimentada de São Paulo. Olho no relógio e percebo que preciso correr para chegar enquanto ela ainda está aberta. Após a dificuldade de estacionar, inerente ao nosso dia a dia, dirijo-me à banca, que já está com as portas semi-cerradas. Havia um rapaz no caixa, então me identifiquei e perguntei a ele se o dono da banca estava no local. Não consegui ver seu rosto com nitidez porque estava meio escuro, apenas notei que era obeso. Ele ficou enfurecido, levantou-se, estufou o peito, engrossou a voz e me respondeu :
 - Tá vendo isso tudo aqui? Eu sou o dono desta banca há muitos anos, junto com meu pai, eu sou em-pre-sá-ri-o!
 Aquelas palavras me deram até um calafrio. Conforme ele ia se movimentando eu notei seus cabelos loiros e lisos, já um tanto quanto grisalhos. Olhei bem nos olhos dele, muito azuis como doutrora. Enquanto ele falava, várias cenas se passavam pela minha mente, olhei com carinho para aquele homem que um dia fora o príncipe encantado dos meus sonhos e que havia, ainda que de forma passageira, feito parte de um período tão bom da minha vida. E percebi o quanto o Chronos é implacável com tudo e todos. Ele esbravejou contra a funcionária que o estava processando, contra a corrupção, contra a economia, comentou sobre a dificuldade que têm os empresários desse país, e eu o continuei observando atentamente. Ele estava tão nervoso que não me reconheceu, mas concordou em receber a Citação Inicial e assinou a contra-fé. Era o que me bastava.
 Noite adentro, depois dessa o melhor a fazer é ir prá casa e descansar, pois amanhã tem mais....

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Diligência à Lusitana no Brasil
Por Fernando Welmer Rodrigues de Carvalho Ferreira (78ª VT/SP)

Todos de prontidão....um plantel de oficiais de justiça em aquecimento....dentre os profissionais, havia alguns amantes do futebol como eu, e todos nós estávamos à postos e distribuídos em grupos de 4 (quatro) em 4 (quatro) - como se fosse um sistema de atacantes de futebol no sistema 4x4x2 - para o cumprimento da ordem judicial emanada pelo Poder Judiciário em face da querida Portuguesa de Desportos - clube desportivo que infelizmente se enquadrava como o principal e único devedor de vários processos judiciais trabalhistas...

A missão foi criteriosamente planejada às vésperas do evento, sob a coordenação da comissão técnica da Central de Mandados - dona da bola -, tínhamos que entrar em campo e dar início aos trabalhos....

Estávamos apreensivos e tristes a apreensão e a tristeza não se dava pela natureza do trabalho em si... mas, também, principalmente, pelo fato de que a executada no processo judicial trabalhista era a nossa querida Portuguesa de Desportos - time de futebol que alguns de nós (como eu) tanto amávamos...

Quem não se lembra dos tempos áureos da época do futebol arte em que se abriam "as cortinas" do gramado e começava o espetáculo... (narração do locutor de radio, Fiori Giglioti) e dali  despontavam grandes atletas, técnicos e profissionais do futebol que entravam em campo e jogavam bola simplesmente pela arte e pelo prazer de jogar sem se preocupar com o vil metal (para a alegria dos torcedores da Capital).

Quem não se recorda do grandes jogadores e profissionais do futebol que por lá passaram, tais como: Ze Roberto, Dida, Ricardo Oliveira, Gallo... - os quais redigiram uma épica história para o futebol do nosso país tal qual Luís de Camões o fez com "Os Lusíadas" para Portugal...

Quantos de nós, por mais que o tempo passe, não consegue esquecer aquela emocionante final do Campeonato Brasileiro entre Portuguesa Desportos X Grêmio - (o Gigante Adamastor) - em 1996, quando   aos 39 (trinta e nove) minutos do segundo tempo a torcida da capital já carregava consigo a taça de campeã em uma de suas mãos - todaviapor um descuido... ou por ironia do destino... nos esquecemos que "o jogo só termina quando acaba" e acabamos como vice-campeões "em mares nunca dantes navegados".

Não podemos acreditar que uma grandiosa história de um clube de futebol como a história da nossa querida Lusa possa ser "arrematada" por um fim tão triste (se é que chegou ao fim).

Nós oficiais de justiça temos plena consciência de que somos os porta-vozes do Poder Judiciário no cumprimento da lei.

"Tudo vale a pena se a alma não é pequena" (Fernando Pessoa).

Diante disso, por mais duro que seja o nosso mister... por mais dolorosa e triste que seja a realidade que tenhamos que enfrentar... (desbravando de corpo e alma os rincões do nosso país a fim de levar a justiça à população)... temos conosco a crença de que a história deixada pela Lusa nos tempos áureos do futebol sempre estará viva em nossos corações e, principalmente, continuará servindo como exemplo para que outros profissionais - como nós e outros amantes do esporte em geral - consigamos contribuir para tirar as crianças da rua e da miséria com o objetivo único de formar novos atletas e profissionais dignos de respeito e de aplausos...

Não podemos deixar de trabalhar e, principalmente, de acreditar em uma Constituição Federal que nos traga mais prosperidade, mais dignidade, mais saúde, mais segurança e pleno emprego.

"Navegar é preciso" (Fernando Pessoa). Força Lusa!!!

Força Brasil!!!

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O casarão misterioso
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Quando eu atuava numa área muito nobre de São Paulo, lembro-me de um enorme casarão, com janelas antigas de madeira entalhada muito bem conservadas, contornado por muros altos, que me despertava muita curiosidade, pois do lado de fora não dava para ver o que de fato havia lá dentro. Alguns diziam que havia sido uma instituição de ensino e que atualmente o prédio estava desocupado. Outros comentavam que era utilizado por cineastas para gravação de filmes e novelas.

Certa feita eu recebi um Mandado de Citação destinado a uma escola. Ao chegar no local, notei que se tratava do tal imóvel misterioso, mas o endereço era de uma entrada pelos fundos. Achei uma ótima oportunidade de desvendar aquele mistério.

Chegando lá, havia um discreto segurança no portão de entrada, que me informou que estava instalado ali um Convento e não uma escola. Pedi para falar com um responsável e ele me oportunizou a entrada, dizendo que eu deveria aguardar a Madre Superiora. Pedi que fosse o mais breve possível, pois eu ainda tinha que ir em muitos outros lugares cumprir outras diligências e não podia esperar por muito tempo.

Quando aquele portão enorme se abriu eu não acreditei no que vi: uma cena simplesmente encantadora, repleta de cores, aromas e sons. Um lindo jardim, muito bem cuidado, ornado com delicadas flores, folhagens exuberantes, árvores frutíferas e um perfume que só a natureza é capaz de nos dar, tudo isso embalado pelo suave canto dos pássaros.

Segui por um caminho delicadamente traçado em meio àquela paisagem graciosa e fui encaminhada para uma sala de espera muito limpa, onde havia apenas duas poltronas, um sofá, uma mesinha lateral com um vaso com uma ramagem natural e um grande crucifixo na parede, e sentei bem em frente ao jardim. Por aproximadamente meia hora eu fiquei ali, estática, e confesso que não percebi os minutos passarem. Admirava aquele jardim inebriante, olhava o crucifixo e não conseguia pensar em nada, completamente imersa naquele ambiente de paz, em meio ao perfume e aos sons da natureza.

Quando a Madre Superiora chegou, explicou-me de maneira muito educada que ali já havia sido uma escola, mas que atualmente é uma espécie de casa de repouso para freiras muito idosas.

Agradeci a atenção e me despedi, caminhando muito lentamente até o portão, procurando gravar na memória todo aquele momento, aquela sensação de serenidade, de que o tempo parou e de estar completamente em paz.

Inacreditável como no meio do caos da cidade grande e do meu dia conturbado eu tive o prazer de me deparar com um ambiente calmo e enternecedor, um pedacinho do céu cuja imagem e sensação eu nunca mais esquecerei.

E nos dias em que passo na frente daquele lugar sempre respiro fundo e fecho os olhos, procurando resgatar aquele momento que serviu como um bálsamo para meu coração acelerado num dia normal de trabalho.

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Fantasiada de amante do Executado
Por Sylvia Macêdo Cavalcanti (TRT da 6ª Região)

Certa feita, estava na secretaria da Vara, no FÓRUM TRABALHISTA DE OLINDA, quando a Juíza (Dra. Ana Isabel), sabedora que eu era a OFICIALA DE CAUSAS PERDIDAS (pois sou conhecida no TRT6 como KATE MARRONE, pois não tenho medo de nada), me chamou em seu gabinete e me solicitou cumprir um mandado de intimação para audiência de um demandado que possuía uma empresa em uma comarca contígua, mas que o oficial de justiça da outra cidade não conseguia o intimar, pois ele havia aberto outra empresa com nome diverso da que ele tinha em Olinda. 

Contando a história da criatura (reclamado) e porque a Juíza me pediu ajuda por saber que eu não temia nada. 

O dito cujo era (faleceu há cerca de três anos) vereador de Olinda na época. Havia aberto uma empresa de PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, visto que era o boom do momento. Oportunidade rentável para os políticos corruptos abrirem empresas desse ramo.  Ele ganhou a licitação para prestar serviços no Município, recebeu o crédito, fechou a empresa, não pagou seus funcionários e abriu outra empresa no mesmo ramo de atividade em outro Município (comarca contígua), com outro nome. 

Com isso,  o oficial da localidade ia até lá e não conseguia notificá-lo, pois seus funcionários estavam orientados a dizer que ali era outra empresa e não conheciam o demandado. 

As diligências eram sempre infrutíferas. 

Com esse pedido da Juíza, busquei informações dele (estilo de vida, nome, etc).

Na pesquisa, descobri que era mulherengo, pilantra, safado,matador (todos os adjetivos depreciativos que possam imaginar) e seu sobrenome era Pinto. 

Analisando as informações,  no outro dia, preparei-me à caráter (fantasiada quase como uma prostituta), saia preta curta, sandália de salto fino vermelha, blusa branca transparente com decotão, bocão vermelho, cabelo na chapinha, mascando um chiclete, perfume sensual. 

Vestida assim, segui pro trabalho.

Ao chegar no  Fórum, fui ovacionada por todos e, ao mesmo tempo, todos ficaram preocupados, visto que a empresa era longe e eu ia sozinha e um dos adjetivos dele(reclamado) era MATADOR. 

Tranquilizei a todos... - Calma, pessoal! Caso eu não retorne em 2 horas, manda uma guarnição da policia para resgatar meu corpo. 

Dito isso, caí na risada kkkk, deixando todos ainda mais apreensivos, pois eu estava linda, leve e destemida. 

Vendo aquilo... Falei! - Se eu morrer, ponha na minha lápide.. MORREU FELIZ NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO. Kkkkk. Aí que o povo endoidou, querendo me impedir de sair... Mas fui de fininho...

Despedi-me de todos e fui embora... 

Chegando na empresa... Toquei a campainha e o vigilante, lá de cima da guarita, já deu aquela rastreada como se eu fosse um código de barras (zimmm... zimm), perguntando... 

É DE ONDE? O QUE DESEJA?, QUAL SEU NOME? É SOBRE O QUÊ?

Eu, piscando “as pestanas” com um sorriso maroto, mascando chiclete feito mulher da vida, dei aquela quebrada básica no corpo e logo falei... 

- Quero falar com o .A ___ Pinto (bem íntima)! E o assunto é particular! 

Dando, em seguida, aquele sorriso safadinho de canto de boca, como se eu fosse a amante do cara.  

De pronto o vigilante abre o portão. Pá!

Creio que ficou com medo de me barrar, achando ser eu uma das... Q... dele...kkk 

Entro na empresa rebolando lentamente. Potoc! Potoc! Potoc!

Chego na recepção e, de logo, a recepcionista (creio que era uma das amantes dele) teve a mesma atitude (no olhar e no perguntar) . 

É DE ONDE? O QUE DESEJA?, QUAL SEU NOME? É SOBRE O QUÊ?

Repeti a mesma fala e a mesma postura de mulher da vida fácil.

Ela (secretária) me mandou sentar num sofá de frente a um corredor cheio de salas. Dou aquela cruzada de pernas À LA SHARON STONE... E me ponho a observar todo o ambiente. Percebo câmeras por todos os lados. 

A secretária interfona para ele e diz. Tem uma “moça” de nome Sylva que quer falar com o senhor e disse que o assunto é particular...

Ele, ao invés de me mandar entrar, vem me buscar na recepção.  Tive a certeza que o mesmo estava me observando. 

Acreditem!!! a criatura veio me buscar para me conduzir até sua sala. 

Eu, sai andando na frente, rebolando feito uma rainha de bateria e o caba atrás de mim parecia mestre sala de escola de samba, babando feito um cachorro louco no cio, com a respiração ofegante... 

Ao chegar em sua sala, puxou a cadeira pra mim e, eu, delicadamente, sentei, botei minha pasta do lado, ficando ele em pé do meu lado esquerdo, com um sorriso de canto a canto de orelha. 

Ele, serelepe, perguntando.. É sobre o quê? É sobre o quê? Parecia mais menino pequeno em festa de Natal... esperando abrir o presente kkkkk

Olhei nos olhos dele  fixamente e disse, só um minuto, por gentileza!

 Virei, abri minha pasta lentamente... A “zuada” do zíper abrindo lentamente parecia um strip tease. 

Peguei minha credencial, o mandado e .... Vraaaaaaaaaaaaaaa! Em direção ao seu rosto!

Como eu já sabia o teor do mandado, havia decorado todo o conteúdo, entreguei a ele e disse tudo clara e contudentemente... 

Pense num susto da mulésta que ele tomou!

Parecia que a criatura tinha levado um choque de 220 volts. kkk

Sua alegria se transformou em ódio mortal. 

Ao ler o mandado,  foi logo dizendo...

Não vou receber! Não vou receber! Essa empresa fechou e aqui é outra...

Eu, calmamente, peguei o mandado, destaquei a cópia de forma rápida e precisa e disse:

- O senhor é um político renomado, abriu uma empresa em Olinda e fechou sem quitar seus débitos. Abriu esta aqui com outro nome pensando que  fugiria da justiça. Tenho certeza que o senhor tem mais conhecimento jurídico que eu... Sabe das suas responsabilidades e obrigações. Não precisa mais se esconder, pois já estamos no seu encalço. 

E, por fim, tenho fé de ofício, não precisa o senhor assinar nada. Farei uma certidão circunstanciada para a Juíza de tudo que aconteceu aqui e o que vi. 

Compareça à audiência, pois, caso contrário, será revel e amargará consequências ainda piores. 

Diante de minhas palavras, ele me pediu o mandado e assinou, repetindo várias vezes que contrataria um advogado. 

Daí,  soltei a fala.. - É bom, mesmo! O senhor tem muita coisa pra se defender. Ele (seu advogado) terá muito trabalho... Dei aquele sorrisinho sarcástico e saí da sala lentamente. Agora não mais rebolando (não era mais preciso). 

Passei pela recepção, dei tchau para a secretária e pela portaria, acenando para o porteiro e pensando... Os coitados vão perder os empregos por terem me deixado entrar. Ow, Dó! São ossos do ofício. 

Amo meu trabalho. Amo o que faço. Não me intimido com situações difíceis. Por isso a minha fama. 

Espero que tenham gostado da minha diligência antológica. Pra mim ela foi a melhor da minha vida. 

Soube que ele foi pra audiência, fez acordo neste e nos demais processos que amargou. 

O mesmo faleceu há uns 3 anos. Nem tive a chance de pedir desculpas pelo susto que dei no cabra da peste. Que Deus tenha guardado um bom lugar para sua alma. 

Esta diligência aconteceu em meados do ANO DE 2002, celular era coisa rara na época. Rara e cara.  Fui com a cara e a coragem. E Deus no coração. 

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Capão Redondo
Por Rogério Santos de Carvalho (54ª VT/SP)

No mesmo dia da minha tomada de posse no TRT/SP, apresentei-me à Central de Mandados. Fui recebido pelo diretor, e ele me disse que eu integraria a equipe do CEP 58 – Capão Redondo. Já ouviu falar?, ele me perguntou. Eu sabia que, a princípio, não iria para uma área boa, tranquila, pois em nenhum lugar do mundo se dá filé mignon ao novato. Naquele momento me veio à mente o helicóptero do Datena. Contudo, mantive a pose e respondi com a autossuficiência de Oficial outrora antigo, na cidade e Tribunal de origem: Já, sim, deixa comigo, eu tenho muita experiência. 

O silêncio eloquente do chefe e o olhar que ele me lançou tinha um misto de desafio e consternação, como se me dissesse: Coitado, sabe de nada...

Na semana seguinte, desci de manhã cedinho na última estação da linha 5 – Lilás do Metrô. Eu trazia debaixo do braço um Guia Quatro Rodas, comprado em uma banca de jornal da Praça da Sé, e cerca de vinte mandados que os colegas da mesa separaram para mim. Eu tinha a determinação de cumpri-los todos naquele dia. Havia traçado um itinerário, mas logo percebi que a realidade se impunha de maneira inapelável. 

O Capão Redondo não é apenas um bairro, é uma mera referência geográfica para as dezenas e dezenas de Jardins disso e Vilas daquilo que existem na região. Uma mancha urbana descomunal, ladeiras, morros, vielas e escadarias, tudo densamente habitado. Aliás, como toda a cidade. E eu achava que morava em cidade grande... Como eu não conhecia as linhas de ônibus, eu resolvi seguir à risca o meu plano, e saí andando pelas ruas, de olho nas placas, quando havia, e no mapa.

Já passava do meio-dia e eu só havia cumprido uns três ou quatro mandados. Estava com fome, suado, mas fui em frente. Havia muito ainda o que fazer e, além do mais, não vi naquelas quebradas nenhum lugar confiável para me sentar e comer. O sol fazia seu percurso em direção ao poente quando, num dado momento, eu me perguntei sinceramente o que fazia ali. Quem foi à minha casa e me obrigou a fazer concurso para outro Tribunal, outro Estado, naquela altura da vida, beirando os cinquenta anos? Ninguém. Era tudo minha escolha. Então, eu que me virasse. Os pés doíam, o estômago roncava e a camisa estava ensopada. Eu não sabia que em São Paulo fazia tanto calor, mesmo no início de abril. Para mim, era a terra da garoa o tempo todo, e só. Apenas oito mandados feitos em quase dez horas de caminhada, a maioria negativa em razão de não achar a numeração nas ruas. Tive a impressão de que os moradores numeravam suas casas de acordo com o número da sorte ditado pelo horóscopo ou pelo resultado do jogo do bicho. 

Joguei a toalha e resolvi voltar para casa, no caso, o hotel, mas o cansaço e o desapontamento embaçaram-me o juízo. Eu não conseguia mais me guiar pelo mapa e não vi como sair daquele labirinto. Passei a perguntar aos moradores o que fazer para chegar à estação do Metrô. As informações que obtive confundiam-me mais do que ajudavam. Eu estava perdido, não sabia para qual lado estava virado. Depois de quase quinze anos de ofício eu me perdi, tal qual uma criança em filme de sessão da tarde. Bateu o desespero porque já começava a anoitecer. Lembrei-me, então, de quando servi o Exército, e que havia aprendido a sigla do combatente perdido: ESAON (estacione, sente-se, oriente-se e navegue). Nunca pensei que um dia usaria aquele ou qualquer outro ensinamento obtido no período de serviço semigratuito à pátria amada salve, salve, nos estertores da ditadura. Minha mochila tinha uma minibússola na alça (outra coisa que jamais pensei que me tivesse serventia).  Sentei-me em uma lanchonete, bebi refrigerante e comi um croquete para lá de suspeito, de olho no mapa e no pequeno instrumento de orientação. Eu estava no Jardim Vaz de Lima, portanto, a uns 2,5 km a sudeste da estação. Embiquei o azimute para lá e parti com o restinho das forças que eu ainda tinha. E, claro, perguntando a um ou outro transeunte. Talvez me ajudassem a  me colocar na direção correta. Bem, para quem está perdido qualquer caminho é uma tentativa. Quando cheguei à Estrada de Itapecirica, fiquei mais feliz do que um tuaregue ao avistar um oásis. Metrô, trem, outro metrô até o Centro da cidade, aonde cheguei quase às dez da noite. Moído, destroçado, preocupado com o que seria dali em diante. 

Os outros dias foram menos complicados. Baixei a bola e respeitei as peculiaridades do lugar: o estranho ali era eu. Com o tempo, eu fui entendendo a maneira mais produtiva de trabalhar. Até aprendi a pegar ônibus. No fim de um ano, eu quase não olhava o mapa. Apesar de todo o sufoco, nunca fui hostilizado pelo povo lutador daquela localidade estereotipada, gente em sua maioria pobre e receptiva, ao contrário de outras regiões abastadas da cidade, que vim a conhecer depois. 

O fato é que a gente se adapta, aprende na marra. Afinal, Oficial de Justiça sempre dá seu jeito.

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Penhora com Plus
Por Alvaro Papa (Cental de Mandados/SP)

Penhoras em residências podem ser traumáticas. Mesmo com amparo legal, a invasão de privacidade é inevitável. Mas não é só isso. 

Era para ser uma diligência rotineira. 

O executado me atendeu bem. Procedi à penhora sobre vários bens da residência, sempre acompanhado pelo executado e seu fiel cãozinho de estimação. Muito bonitinho o animal, inclusive. Só não percebi um detalhe: gostava de fazer suas necessidades fisiológicas onde bem entendesse (inclusive o nº 2). E esse foi meu erro: não percebi que o campo estava minado....

Foi uma desgraça. Literalmente “chapei” meu sapato em um dos robustos dejetos do cãozinho. Não vi. Nem o dono. Isso foi o suficiente para “empastar” o apartamento inteiro, enquanto circulava e efetuava a penhora, com todo o rigor e formalismo. 

Quando me despedi, dei-me conta do estrago, juntamente com o executado. Após um silêncio mórbido, a frase: desculpe, meu senhor, quer que eu limpe? E a resposta resignada: deixa que eu limpo, filho. 

Dever cumprido. Sentimento de culpa por uma inevitável conclusão: o executado ficou na merda.

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Professora Maria
Por Edna Maria de Santana Prates (Cental de Mandados de Osasco)

Caro leitor, Oficial de Justiça somos o servidor público responsável pelo cumprimento das determinações judiciais,  longa mão do Juiz.

O Juiz manda, daí o título do documento que é expedido  mandado, que nos é entregue  para o cumprimento das ordens, classificados em dois tipos: atos de comunicações (notificações, citações e intimações) e atos de força (penhora de bens, avaliação, remoção, imissão na posse, busca e apreensão, sequestro, arrestro, condução coercitiva).

Mandado em mãos, cada dia de trabalho uma emoção, estresse e surpresa, nem sempre  agradável, afinal quem é que gosta de ser chamado a cumprir ordem judicial.

Muitas foram as experiências no corpo a corpo com as pessoas, segue o relato de uma delas. 

Certa vez, recebei um mandado de citação de audiência, o local um restaurante, com novos sócios proprietários, um casal de meia idade, nomes fictícios Sr.  João e Sra.  Maria.

A ação trabalhista era de empregado, que trabalhara para  antigos sócios proprietários. O casal, segundo declararam, foram  empregados mais de vinte anos em outro ramo, juntaram o dinheiro para o sonhado “negócio próprio”, “ser patrão”. 

Adquiriram aquele restaurante, sem experiência, sem pesquisar como estavam as dívidas dos antigos proprietários, tampouco tinham ideia que poderiam ser responsabilizados por antigos débitos e ações trabalhistas.

No entanto, surgiram outras ações iniciais, execuções antigas, e com frequência passei a receber muitos outros mandados destinados aquele restaurante. O casal, acompanhado de advogado, respondia as ações, comparecia às audiências e formalizava acordos.

Acontece que o movimento  piorou e fecharam o restaurante.

Passei a receber mandados no endereço residencial do Sr. João e Maria, uma pequena casa térrea, sem garagem, num bairro popular da cidade de Mairiporã.

Certo dia, lá estava de novo com mandados de execução (penhoras), e o Sr. João e Maria, muito entristecidos, abriram as portas da geladeira e armário de cozinha, para demonstrar a triste situação nenhum alimento, exibiram diversas contas de água e luz atrasadas, sem pagar, estavam dependentes de ajuda dos vizinhos e parentes.

Muito revoltada a Sra. Maria, chorando, disse que estava muito deprimida, que aqueles mandados foram resultados de uma Juíza que não permitiu defesa sem advogado, que era seu direito, que declarou a revelia e confissão, na presença dela em audiência, provocando prejuízo maior. E para completar, o filho do casal estava com uma doença rara, o Sr. João não estava conseguindo sua aposentaria, enfim problemas e mais problemas.

Bom, com muita compaixão e paciência ouvi e vi a situação, não realizei a penhora (por ausência de bens). Na saída perguntei  à Sra. Maria se ela havia estudado, ela respondeu que não havia terminado o ensino médio. 

Aí sugeri que voltasse a estudar ali  mesmo no bairro, pois da sua porta da casa, avistava uma escola pública com educação para adultos.

Ali retornei diversas outras vezes, e aos poucos a situação mudou. Ela voltou a estudar, concluiu o ensino médio, conseguiu emprego, formalizou  pouco a pouco alguns acordos.

Os mandados continuaram a chegar, a Sra. Maria agora era estudante de pedagogia com bolsa 100% pago pelo PROUNI.

Finalmente, bela surpresa, os últimos mandados que recebi,  que surpresa, a executada agora era conhecida no bairro como “Professora Maria”, havia passado no concurso municipal e lecionava na Escola Municipal do bairro, e pagou todas as execuções.

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O dia está cinza
Por Cezar Adriano Dias (CEUNI/JFSP)

Lentamente abro os olhos. Por cima do corpo deitado ao meu lado, vejo fios de luzes entrando pelas arestas da janela. Deve ter amanhecido. Terei que fazer uma condução coercitiva logo mais e me arrepio. Será que dará tudo certo? Não conheço a área onde a testemunha mora. Não conheço a testemunha. Muitas coisas para dar errado! Me arrasto pela cama até a sua beirada. Para me levantar apoio-me na parede. Levanto e olho novamente para o corpo deitado. Os cabelos iluminados cobrem parcialmente o rosto. Que sorte eu tive! Cambaleando vou em direção ao banheiro e a luz entrando pela sua janela me ofusca. Será que estará sol em São Paulo? Olho através da janela até conseguir distinguir o céu. Tudo cinza. Acho engraçada esta constatação e me sento no vaso.

Eu gosto de banheiros! Acho que trouxe isto da época da faculdade: na minha república, havia mais cinco homens e o único lugar em que se tinha privacidade era o banheiro. Bons tempos. Do lado de fora, ouço as maritacas se esguelando. Olho novamente para o céu. Realmente está tudo cinza. Um sorriso amarelo surge em meu rosto. Sem desejar, começo a me lembrar dela. Às vezes, sinto muita falta dela. Adorava a sua gargalhada. Todos adoravam. Será possível o dia ser cinza, apesar de tudo ser colorido ao seu redor? Fecho o sorriso. Esta pergunta me assombrou por meses até eu conseguir entendê-la. Há cor onde há cor, a não ser que se seja daltônico, eu pensava. Hoje eu entendo.

Tudo começou quando a Central de Mandados foi criada. Nós, que estávamos acostumados a cumprir mandados numa determinada área, tivemos que optar por outra, em virtude da antiguidade. Escolhemos as únicas áreas vizinhas que restavam, na periferia da cidade. Ela, que era acostumada com uma área bem estruturada, de classe média, de repente viu-se diante da estupidez humana. Pessoas entulhadas em um mesmo cômodo, esgoto a céu aberto e sujeira por todo o lado. Andares alcoolizados e cambaleantes. Crianças descalças correndo entre vielas fétidas. Fios elétricos numa verdadeira teia eletrificada. E a violência, a violência do sistema contra eles. Deles contra nós.

Não que ela tivesse realmente sofrido algum tipo de violência explícita, não que eu tenha presenciado. Já fui assaltado, algumas vezes, na minha área. Já fui xingado, também. Mas ela, não. A violência está nos olhos de quem conversamos, nas respostas secas e truncadas, no medo, nos olhos das crianças. No vagar de adolescentes e adultos, que sem ter o que fazer, se tornam desconfiados e perdidos. No agir de quem vê com naturalidade a agressividade que a vida lhe impôs. A violência se sente no ar.

O mal que a afligiu não foi súbito. Foi literalmente, maldoso. Lento. Foi minando- lhe a autoestima e a sua percepção de capacidade. Justo ela, que havia enfrentado e conquistado tanta coisa sozinha, convenceu-se de ser inapta para trabalhar. Como eu percebi? Não percebi. Só aconteceu.

Aconteceu em um dia em que eu fiquei em casa. Eu precisava pesquisar a avaliação de alguns maquinários e ela precisava fazer suas intimações urgentes. Três horas depois que ela havia saído, tocou o telefone. Ela chorava. Dizia que me amava e que não queria morrer ali sozinha. Eu mal conseguia falar...ela havia sido sequestrada ou rendida por algum bandido? Não, ela paralisou. Encostou

o carro na principal via de acesso a São Paulo, e ali ficou. Quando cheguei para retirá-la do carro, ela ainda chorava. Entre soluços, pedia desculpas pelo trabalho que estava dando. Qual trabalho? Dali em diante foram muitos os pedidos desnecessários de desculpas.

Começou com terapia, psiquiatras e remédios. A doença atingiu nossas relações sociais e familiares. Parecia que tudo ia desmoronar. Mas, ainda sim, ela queria ser forte, dizia que teria que trabalhar sozinha. Inúmeras vezes, saiu para trabalhar e retornou minutos depois, sem conseguir chegar até a estrada. Se trancava no quarto. Chorava mais.

A convenci de que poderia acompanhá-la no cumprimento dos mandados. Nesta época, ela me perguntou: ”eu vejo tudo cinza, mas você vê cor nas manhãs”?

Agora, viro para a janela, como se eu quisesse ter certeza: de fato, o céu está cinza.

Cheguei dirigindo o carro. A rua era estreita de forma que apenas um carro poderia transitar, mas ainda assim, existiam diversos veículos estacionados em cima das calçadas, também estreitas. Dirigi até achar a numeração que, na verdade, era o acesso em declive a uma viela. Parei o carro, também na calçada, de frente a uma escada. Do lado direito, uma casa alta em alvenaria com tijolos expostos, aparentava ter sido construída em etapas. Pareceu-me que os proprietários aumentavam um pavimento sempre que podiam. Acho que já estava no quarto acima do nível da rua. Mas a casa devia ter mais pavimentos, pois a construção acompanhava parte da escadaria abaixo. Olhei para ela e ela olhava fixamente à frente. Peguei em sua mão. Frias. Ela olhou para mim e sorriu timidamente. Parecia estar juntando forças. Eu falei que ela não precisava descer e que iria em seu lugar. “A numeração deve ser toda aleatória, não vamos localizar de qualquer jeito”, disse sorrindo. Ela ficou séria e rosnou que era capaz de descer aquela escada. Não quis que eu a acompanhasse. Teimosa. Do carro vi sumindo, enquanto descia com as mãos apoiadas no muro sujo. Voltou vitoriosa: número localizado e executado intimado. Vitoriosa? Sim, mas a que custo? Quanta energia, quanta força ela teve que gastar para essa diligência.

Tivemos altos e baixos. Passamos a viajar com mais frequência para que ela (e eu!) pudéssemos recarregar as energias. Fizemos dívidas, mas não importava! Veio a surpresa: uma nova vida. Uma linda vida! Um novo motivo para se esforçar, mas uma nova batalha a se travar. Vencida! E vejam: cores para as manhãs! Novas batalhas viriam, mas não enxergávamos mais o fundo do poço.

Suspiro. Eu gosto de ficar no banheiro refletindo. Realmente, Deus é um cara gozador que adora brincadeiras, diz a música. Novo suspiro. É uma pena, ela se foi tão cedo!

Inspiro profundamente como se fosse faltar ar. Levanto. Acho engraçada esta minha mania de levantar e ir para o banheiro, mesmo sem vontade alguma. Saio mais disposto para o quarto e noto a cama vazia. Sinto o cheiro de café vindo da cozinha. Adoro. Realmente, tive sorte de poder recomeçar. Olho o relógio. Melhor eu me aprontar. A condução coercitiva não vai se fazer por si só, e o pequeno que dá cor às manhãs, irá acordar. Abro a janela do quarto completamente. O dia está cinza, mas o céu tem mais cores.

Em homenagem a Alessandra Taguchi, Oficial de Justiça Federal da JFSP, minha falecida esposa que desencarnou em 31/12/2015, após um ataque cardíaco fulminante. Servidora  íntegra, enfrentou a sua depressão e a síndrome do pânico com garra, dedicando-se, além do  que podia, a nosso filho, Eduardo Taguchi Dias, que herdou da mãe toda a inteligência, integridade e teimosia.

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Palabrotas
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Naquela tarde de verão eu pingava de tanto calor e suor e a água que eu levava no carro havia acabado. Estava num bairro residencial de São Paulo, e por ser um local que eu não estava acostumada a diligenciar eu não sabia onde havia comércio nas proximidades, então a sede teria que esperar. Na próxima parada eu deveria efetuar a penhora de um imóvel. Com muita sorte eu seria atendida por uma boa alma que me ofereceria um delicioso copo de água gelada... 

Era um sobrado simples e antigo, localizado numa rua sem saída fechada por um enorme portão de ferro. Toquei no interfone o número do sobrado, mas ninguém atendeu. Um vizinho que estava chegando no local me disse que na casa que eu estava procurando morava uma senhora espanhola meio surda e se ofereceu para ir chamá-la. Com tanta gentileza do rapaz aquele parecia ser meu dia de sorte. 

Após alguns instantes chegou uma senhora robusta, com sotaque espanhol, falando alto e gesticulando exageradamente. Expliquei o que estava acontecendo e a determinação judicial na qual eu deveria dar cumprimento. Ela se deu conta de que o executado era a pessoa que havia vendido o imóvel a ela e a seu falecido marido há mais de 20 anos, mas também lembrou-se que o Contrato de Compra e Venda do imóvel não fora averbado no Cartório de Imóveis, razão pela qual ainda constava o nome do antigo proprietário no registro do imóvel. A anciã começou a proferir palavrões inomináveis em face de seu finado marido, dizendo que ela sempre falou para ele registrar o imóvel, mas que aquele *&%#@ nunca tinha iniciativa, que aquele *%$#&* a enrolou a vida toda e ainda deixou esse abacaxi para ela resolver. 

Ela implorou que eu não fizesse a penhora, falava como se estivesse num palco, numa cena de tragédia em que fosse a atriz principal. Eu expliquei que se tratava de uma penhora do imóvel e que eventuais alegações deveriam ser feitas em Juízo. 

A senhora surtou, começou a gritar e a vir prá cima de mim com o dedo em riste. Eu não via a hora de sair dali e tomar água pois estava quase desmaiando (nem pensar em pedir um copo de água, pois era capaz de vir envenenada), além do que eu estava prestes a sofrer uma agressão física. Então expliquei calmamente à senhora que ela deveria procurar um advogado e fui me despedindo. Ela continuava a esbravejar, e eu disse, encerrando a conversa:

- Bem, então é isso, a senhora tem um problema e precisa procurar ajuda jurídica para resolvê-lo – e mais que depressa fui me afastando dela. 

Ela ergueu o braço e me respondeu aos berros:

– Eu sou espanhola, tenho sangue espanhol, você não sabe do que eu sou capaz, eu vou te mataaar!!!

Eu respirei profundamente e respondi com firmeza olhando bem no fundo dos olhos dela:

- Bem, nesse caso, a senhora, que já tem um problema, terá dois problemas para resolver!

Ela arregalou os olhos, deu um passo para trás, abaixou o braço, e respondeu gaguejando:

- Desculpe, não foi isso que eu quis dizer, sabe como é, aquele meu marido só fazia besteira....

Ela começou a querer chorar, eu fui encerrando a conversa e me despedi educadamente, antes que ela tivesse outro surto. Ela se acalmou, me acompanhou até o portão e se despediu dizendo:

- Obrigada, querida, bom trabalho, vai com Deus!

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Constrangimento
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Após várias tentativas de encontrar o executado, decidi fazer a Intimação por Hora Certa. Tratando-se de Penhora de Imóvel e nomeação de Depositário, o Auto a ciência deveria ser dada pessoalmente. Eu já havia estado naquela casa de alto padrão num bairro nobre de São Paulo no período diurno e noturno, já havia sido atendida pelo motorista, o jardineiro, a cozinheira, a faxineira, deixei recados, mas não recebi qualquer retorno.

Então entreguei um aviso por escrito ao motorista, informando que retornaria ao local no dia seguinte às 9h, horário esse que me disseram que o executado costumava sair para trabalhar.

No dia e horário agendados eu retornei ao local e fui recebida pelo motorista, que informou que o executado estava ocupado e não poderia me atender. Expliquei que em se tratando de Hora Certa e que a ciência seria dada de qualquer maneira. Aguardei mais uns instantes e o motorista muito gentilmente solicitou que eu esperasse numa sala no interior do imóvel, posto que o destinatário estava muito ocupado, mas que já iria me atender.

Era uma belíssima sala, com pé direito alto, móveis de muito bom gosto, muito limpa, luxuosa e iluminada.  Após alguns minutos um senhor de meia idade chegou, me cumprimentou e pediu desculpas por estar naqueles trajes, pois estava tomando banho. A criatura trajava apenas uma toalha amarrada na cintura, que não era de rosto, mas também não era das maiores. Eu disse que poderia aguardar enquanto ele se arrumava, mas ele insistiu que não queria tomar muito do meu tempo. Falei novamente que não estava com pressa e que ele podia se ajeitar com calma, mas ele teimou que preferia me atender logo.

Ele cerrou as altas janelas com uma cortina escura e fechou a enorme porta de correr que havia na sala, o que fez com que o ambiente ficasse totalmente sombrio. Então sentou-se ao meu lado e eu tentei ser o mais breve possível ao explicar do que se tratava. Ele resolveu contar a história da empresa e a querer me convencer de que a penhora não poderia ser feita. Mas o mais tormentoso era que, conforme ele se mexia a fenda da pequena toalha se abria mostrando o vão das pernas e ele ficava ajeitando o tecido felpudo.

Eu só pensava que havia agendado o horário e que ele sabia que eu chegaria naquele momento, não tinha sido pego de surpresa, mas devido à minha insistência resolveu apresentar-se daquela maneira.

Percebi nitidamente que aquilo tudo tinha como finalidade me constranger, encerrei o mais depressa possível a conversa, pedi os dados necessários para o Auto de Depósito e indiquei o local em que ele deveria assinar. Mas infelizmente a fenda da toalha não parava de abrir.

Saí dali como quem renasce da escuridão. Voltei a ver a luz do sol e respirei aliviada.

O motorista me acompanhou até a saída da casa e disse-me que a minha presença ali significava que a Justiça realmente funciona. E fez um desabafo: o patrão não estava pagando corretamente seu salário e em breve também teria que acioná-lo na Justiça do Trabalho. Eu desejei-lhe boa sorte, mas internamente gelei só de pensar que poderia ter que cumprir novamente diligências naquele endereço...

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Escambo
Por Alvaro Papa (Cental de Mandados/SP)

Eram outros tempos. Smartphones não existiam. Como localizar endereços nos confins da Zona Leste, ainda mais trabalhando a pé ? Simples: guia numa mão, mala na outra. 

A diligência seria breve. Afinal, era somente uma citação. Adentrei numa empresa e o gerente, muito solícito, recebeu-me em sua sala. Coloquei o meu guia em sua mesa. Estava dentro de um saco plástico branco. Procedi à citação e rapidamente me despedi, pois tinha pressa. Obviamente não podia esquecer meu precioso guia. Peguei minha mala, o saco plástico branco e enfim, rua.

Mas algo errado ocorreu... 

Já tendo caminhado vários quarteirões, notei que meu guia estava muito quente, o que me causou estranheza. Afinal, o dia não estava tão ensolarado assim. Intrigado, resolvi inspecionar e tive um choque: peguei o saco plástico errado e levei a quentinha com o almoço do referido gerente...... 

Tinha que agir rápido. Ladrão de quentinhas realmente é fim de linha.......

Só Deus sabe como corri.

Deu certo. Reverti a troca. O gerente, muito compreensivo, ainda não havia iniciado sua refeição. Mas a quentinha ficou bem detonada. Entortou e vazou. Acho que foi para o lixo.

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O dia da posse
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Já faz algum tempo que passei no concurso para ser Oficial de Justiça, mas lembro-me como se fosse ontem da forma como o Diretor da Central de Mandados de São Paulo me recebeu no dia da minha Posse e da conversa que tivemos. Ele foi muito atencioso e me deu uma verdadeira aula de como agir em determinadas circunstâncias. Deu uma série de instruções, especialmente como lidar com pessoas nervosas e perturbadas e concluiu olhando bem fundo nos meus olhos e dizendo: 

- Quando você se tornar Oficial de Justiça na prática, atuando nas ruas e enfrentando as situações mais adversas em seu dia a dia, a verdade é que você nunca mais será a mesma pessoa... 

Dito isso, ele abaixou a cabeça e desviou os olhos, cerrando os lábios.

Aquilo me intrigou profundamente. Naquele momento eu realmente não tinha condições de entender qual seria essa transformação tão profunda que eu passaria. 

Após vários anos da minha Posse eu consigo entender perfeitamente o que ele estava tentando me dizer. Foram tantos percalços que passei tentando exercer meu ofício, tantas mazelas do ser humano às quais me deparei, sorrisos e choros no meio do expediente, que, de fato, posso dizer que me transformei completamente e hoje sou outra pessoa, que se arrisca ao entrar sozinha em áreas de risco, em certas áreas de periferias onde há toque de recolher e onde nem o carteiro consegue chegar, que lida com todos os tipos de humores, que enfrenta as intempéries da natureza com bravura - sejam elas chuvas torrenciais, enchentes, calor escaldante, frio de congelar até o nariz -, que sai todos os dias para trabalhar sem saber se vai voltar e que se der medo, reza um Pai Nosso e uma Ave Maria e vai com medo mesmo. 

Não sei se me tornei uma pessoa melhor ou pior, mas com certeza uma pessoa mais forte, mais corajosa, que vence a timidez e conversa o dia todo com estranhos e faz o melhor possível para dar cumprimento às ordens judiciais, faça chuva ou faça sol, doa a quem doer.

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Penhora Ecológica
Por Alvaro Papa (Cental de Mandados/SP)

Andanças durante as diligências podem trazer momentos contemplativos. É o que se podia esperar de um belo final de tarde em um bairro com muitas árvores e o canto das cigarras. Mas a natureza não tem somente seu lado poético. 

A diligência era de penhora. O local, uma bela casa. Sobreveio momento de tensão. Pessoa me atendeu via interfone e somente avisou para aguardar a vinda da responsável ao local. Sem definição e muito nervoso, aguardei. 

A responsável chegou. Era uma advogada. 

Ato contínuo, como “longa manus” do juiz e munido de todas as prerrogativas a mim conferidas, passei a dar-lhe ciência do teor do mandado, advertindo-a das consequências de sua eventual resistência. 

Mas subitamente fui interrompido, quando engoli uma mariposa.....

Tentei a todo custo manter a compostura, em vão. Não parava de tossir. 

Completamente desconjuntado, acabei por ser acudido pela referida advogada. Muito atenciosa, ainda me deu um copo com água.

E a diligência ? Negativa. A advogada nada tinha a ver com a executada.

E a mariposa ? Lamento por ela.

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Fetiche de Porteiro
Por Rogério Santos de Carvalho (54ª VT do TRT-2)

Toda vez que eu recebia algum mandado para aquele luxuoso prédio comercial da Rua Tabapuã, quase esquina com Faria Lima, no Itaim Bibi, eu já previa aporrinhação. Empáfia e má vontade definiam a atitude dos funcionários dali.

Eu já adotava como estratégia de conduta fazer o máximo para não me alterar diante de manifestações hostis, caso contrário não seria possível dar conta do trabalho, afinal ninguém recebe Oficial de Justiça, o arauto das más notícias, com sorrisos e mesuras. Porém, naquele dia eles foram especialmente deseducados, para dizer o mínimo.

Primeiro, demoraram em fazer a comunicação com a empresa destinatária que funcionava em um dos conjuntos do prédio; depois, ao tentarem contato sem muita insistência, disseram que ninguém atendia; mais algum tempo, em nova tentativa que eu pedi que fizessem, afirmaram que os interlocutores não teriam ninguém para mandar à recepção e que não poderiam me receber.

Minha temperatura deve ter subido um grau e a pressão arterial certamente acompanhou a tendência de alta. Respirei fundo e argumentei:

- Como assim, não podem me receber?

- É, não podem, fazer o quê? - disse-me a recepcionista sem me olhar na cara.

- Isso não existe. Por favor, fale para eles que se não descerem imediatamente eu é que vou subir.

- Isso também não vai ser possível, já que eles não autorizam – arrematou, meneando o corpo para os lados como se fosse chamar o próximo da fila que já se formava atrás de mim.

Paciência tem limite e eu já estava perto de perdê-la, mas, ainda assim, procurei manter a calma.

- Moça, chame o seu supervisor, o síndico ou quem resolva este problema simples que pode virar um problemão.

A recepcionista deu um muxoxo e fez um contato pelo interfone. Pensei: agora a coisa se resolve. Depois de poucos minutos surgiu um homenzarrão de terno, que se identificou como gestor do condomínio, uma espécie de síndico gourmet, embora mais se parecesse com um leão de chácara. O sujeito reafirmou que se o condômino não autorizasse o ingresso de “quem quer que fosse”, o acesso não seria permitido. Falou isso sem mover um músculo da face.

A situação tornava-se surreal. Naquele momento me veio a vontade que todo Oficial tem de dar voz de prisão a todo mundo, coisa que geralmente coloca uma diligência a perder. O que se resolve em minutos pode se arrastar por horas na delegacia, na maioria das vezes sem dar em nada a não ser mais aborrecimentos.

Pensei em dizer a ele que a minha presença ali não se tratava de uma visita comercial ou de cortesia, e discorrer sobre o que significa uma ordem judicial e todas as prerrogativas legais constantes do mandado que são colocadas à disposição do Oficial de Justiça, mas me pareceu tão óbvio que fosse do conhecimento do cidadão, que eu percebi que seria uma perda de tempo e, se assim o fizesse, eu me sentiria um verdadeiro idiota em falar o que ele já sabia. Afinal, será que para ser gestor de um condomínio ou coisa do gênero não se tem de saber isso?

Limitei-me a olhar para o sujeito, que se mantinha impassível, e disse-lhe: Ok, então. Tomarei minhas providências.

 E afastei-me para fora da recepção, permanecendo na rampa de acesso enquanto fazia a requisição da força policial.

Passados uns vinte minutos, veio um dos recepcionistas em minha direção. O Sr. Fulano, o tal gestor, havia “me autorizado a subir”. Fiz um esforço hercúleo para não dizer qualquer palavra, mantendo a atenção ao movimento da rua. Mais uns minutos e desta feita veio o próprio Sr. Fulano, pedindo para que eu compreendesse que aquelas eram as regras, mas não queria transtornos, amenizando a postura inicial. Porém, já era tarde demais. Permaneci em silêncio, e logo a seguir surgiram duas viaturas da PM. Expliquei a situação aos policiais e passei a qualificar todos da recepção, a começar pelo gestor. Lotei o elevador. Subi com o gestor e a tropa até a sala. Lá chegando, da mesma forma, identifiquei os empregados da empresa, colhendo RG, CPF, endereço, o diabo, tudo para demorar. O gestor murmurava que não havia necessidade daquele aparato todo, que estava causando problemas à rotina do prédio. Eu permaneci a maior parte do tempo calado, e, àquela altura, estava adorando aquilo tudo. Mais ainda quando o sargento disse ao Sr. Fulano, diante de mais uma lamúria: Engraçados, vocês. Atrapalham o serviço do Oficial, que se vê obrigado a nos tirar do patrulhamento das ruas, onde realmente se precisa de polícia, para depois dizerem que não precisava. É sempre assim, parece um fetiche. Vocês precisam ver polícia.

Fiz força para não rir ao pensar em 50 tons de cinza, a cor da farda da PM. Uma policial feminina que integrava a equipe soltou uma risadinha discreta e sarcástica. Deve ter tido o mesmo pensamento que o meu.

Era uma simples citação inicial e a audiência era para dali a alguns meses, ou seja, coisa que o carteiro poderia fazer.

Das outras vezes em que precisei voltar ao prédio, não digo que estenderam um tapete vermelho para mim, mas certamente eles preferiram que não houvesse outra balbúrdia no recinto.

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Dois peixes fora d'água
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Há alguns anos atrás recebi um mandado de Constatação para ser cumprido numa rua nobre de São Paulo, no Bairro de Santana, lugar de gente fina e imóveis luxuosos.  Não me lembro com exatidão o nome da empresa, mas era algo parecido com "Bem Estar Entretenimentos Ltda". 

Ao chegar no local fui informada pela vizinhança que ali funcionava uma casa noturna, que só abria após às 18h. Então combinei com uma colega Oficiala super alto astral, que tem a Alegria até no nome, de sairmos juntas numa noite daquela semana para efetuarmos algumas diligências em dupla: uma Penhora e Avaliação numa pizzaria, uma Citação Inicial de um sócio que ela nunca encontrara durante o dia e a Constatação - assim uma poderia ajudar a outra e evitaríamos correr riscos. A profissão de Oficial de Justiça é muito solitária e cheia de imprevistos, além de nunca sabermos quando e onde poderá estar o perigo. 

Fomos primeiramente na casa do sócio e na pizzaria e deixamos a empresa Bem Estar por último. 

Ao chegar na casa noturna, notamos que estava toda iluminada, mas de forma discreta. Adentramos no local e a iluminação interna chamou mais ainda a nossa atenção, com muitas luzes vermelhas e um globo giratório no centro. Belas mulheres circulavam apenas de lingerie, cintas-ligas, espartilhos e salto alto. Ao som de músicas sensuais, algumas dançavam pole dance, realizando as coreografias na barra vertical com um equilíbrio invejável. O clima de erotismo realmente estava esquentando por lá. 

Uma das moças estranhou a nossa presença de terninho e pasta de couro e veio conversar conosco. Pedimos para conversar com o/a responsável pela casa. Então surgiu uma mulher muito sensual, usando roupas decotadas e exageradamente curtas, que prontamente nos atendeu, perguntando de forma bem natural:

- Boa noite! Tudo bem? Vocês vieram para a entrevista? 

Respondemos um "Não!" em uníssono, arregalamos os olhos e seguramos a risada. Esclarecemos que estávamos cumprindo uma ordem judicial e que era necessário constatar se uma ex-funcionária havia exercido a função de garçonete naquele local. 

A Gerente nos explicou que tratava-se de uma casa de massagem e que quando os clientes estavam nos quartos, eventualmente pediam um drink, que era servido pela acompanhante, mas nos mostrou que não havia garçonete, inclusive perguntamos para algumas garotas que estavam ali e elas confirmaram que, de fato, a reclamante daquele processo não havia exercido a função de garçonete, e sim de massagista, nome que davam às garotas de programa. 

Agradecemos e saímos de lá o mais breve possível, para que pudéssemos rir à vontade da vez em que, no cumprimento de uma diligência, fomos as duas únicas mulheres completamente vestidas dentro de um estabelecimento e, ainda assim - com pastinha na mão e tudo - confundidas com candidatas à massagistas. 

(Essa passagem inusitada me foi contada pela Oficiala Mônica Zorzetto e eu não podia deixar de transformá-la em crônica. Afinal, mais do que a facilidade com as palavras, é imprescindível ter uma boa história pra contar.)

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Resistência à Penhora
Por Miriam Barbosa Dias (CIAO Santos)

Novamente nos idos de 2003...2004...

Eu, lotada na 1a Vara de Santos, fui em cumprimento de penhora em uma diligência em residência de ex-sócios.

Assim....como creio q vários colegas, já se depararam com aqueles instruções ridículas que alguns "advogados" dão aos seus clientes para NÃO atender um Oficial de Justiça...

Pois bem...depois de deixar uma "carta" na portaria do prédio, explicando que não gostaria de tomar medidas drásticas...consigo contato útil com moradores e combino a diligência.

Os moradores me recebem...uma dívida de cerca de uns 40 mil reais à época em um apartamento classe media de 2 dormitórios...

Lógico que não haveria nada ali que pudesse ser penhorado que pudesse solver a dívida...

E nisso fui adentrando o apartamento...e deparo com a porta do quartinho dos fundos trancada! Absolutamente trancada!

Nisso, percebo o apavoramento da família inteira! APAVORADOS MESMO!

Peço para abrir a porta...dizem que não há nada ali..

Já aborrecida, tarde da noite, engrosso o caldo de vez! Digo que dou 5 minutos para abrir senão vou chamar a Polícia!

A dona da casa então resolve abrir!

Qual meu espanto ao ver uma cachorrinha Maltes e 3 filhotinhos??? 

Tive q segurar o riso...

A filhinha do casal....na maior inocência ....pergunta: moça (eu era moça à época rs) vc não vai levar os meus filhotes né? 

Eu: nãoooo! Nem me é permitido levar nada assim! 

E falo: mas posso brincar 10 minutos com os filhotes então né? 

No desespero, a família pensou que os cachorrinhos seriam passíveis de penhora!

Fui embora ...expliquei que ali a diligência seria negativa e que não precisavam trancar os filhotes porque eles seriam tecnicamente "impenhoráveis"...

Em tempo: os totozinhos gostaram de mim! Rs

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Ameaça Velada
Por Fábio Silva Cardoso (30ª VT de SP)

Durante uma diligência de penhora livre num mercadinho no extremo da zona leste (área de comunidade e invasões) enquanto certificava os bens que guarneciam o comércio (a maioria estava em comodato através de fornecedores ou tinha pouco valor comercial) a esposa do sócio do mercadinho me advertiu: "é bom não ter nada para penhorar mesmo porque se você nos prejudicar é só passar o rádio informando a placa e o carro que você tá". Diante dessa ameaça velada e por se tratar de uma região dominada por um dos braços do PCC, tranquilizei-a sobre a minha função ali, mas não tardei em zarpar logo do local e não precisei voltar mais graças a Deus.

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Cabelo nas Ventas
Por Rogério Santos de Carvalho (54ª VT do TRT-2)

Já faz um tempinho, estava eu jogando conversa fora com um amigo, falando sobre trivialidades, eis que surge, invariavelmente, o ensejo de falar de música. Falei que gostava muito de Gilberto Gil e Pepeu Gomes, no que o amigo me disse que não gostava deles porque aquela coisa de “porção mulher” e “homem feminino” seriam “coisa de viado”. Não discuti. Sinceramente, é perda de tempo discutir com pessoas, às vezes queridas, com essa mentalidade tosca. Na verdade, eu não sei nem quero saber o que os referidos artistas fazem com suas respectivas genitálias e orifícios. Gosto de suas canções e pronto. Penso mesmo é que gente assim é incapaz de entender a sutileza dos versos, nem tampouco se dar conta da dualidade do ser humano.

Parece-me claro que todos os homens e mulheres têm ambos os lados, sejam eles hetero, homo, bissexuais e outras coisas do gênero. Entendo a “porção mulher” como a sensibilidade, o permitir-se chorar de vez em quando, a ternura que todo homem tem, mesmo que negue e tente esconder. Por outro lado, a “porção homem” seria a atitude da mulher, o sustentar-se, o “partir para dentro” e realizar, sem esperar pelo provedor, o homem que faz por ela, atributos que toda mulher tem, ou deveria ter, e se valer deles. 

Falando nisso, lembro-me de uma mulher com quem convivi por alguns anos. Era minha colega de trabalho, na Central de Mandados do Fórum Regional de Madureira, e amiga para muitos momentos de sufoco. Ela trazia consigo um poder de atitude, decisão, coragem, uma mulher de cabelo nas ventas, enfim, “mais macho que muito homem”, como, aliás, diz outra canção. Fizemos várias diligências juntos, passamos por muito perrengue, ameaças de morte, inclusive. Extremamente educada, falava com magistrados e com a mais humilde das pessoas com a mesma polidez, mas fazia valer a sua opinião, seu ponto de vista e sua autoridade no cumprimento dos mandados, conforme o caso, sempre dosando, sabendo a medida exata para cada situação. Porém, havia momentos em que nem ela conseguia se manter no prumo. Houve casos excepcionais em que ela se indignava com a canalhice do ser humano. Num desses, chegou a pegar pelo colarinho um cidadão, que, ao ser afastado do lar por haver batido na mulher e na filha de 14 anos, xingou-as de todos os palavrões que lhe vieram à cabeça, para depois jogar o botijão de gás num rio que passava atrás da casa, de modo a que elas não pudessem fazer comida. A colega perdeu as estribeiras, passou-lhe uma descompostura e quase dá umas bolachas no sujeito. Em outra oportunidade, durante um despejo de um policial-militar de quase dois metros de altura, que estava se recusando a sair do imóvel, ela radicalizou. Num dado momento, durante as conversações para uma desocupação na paz, o militar disse “que ainda não havia atirado em ninguém naquele dia”. Para quê? Ela, ex-policial, virou-se para ele, estufou o peito e mandou-lhe, na lata: “Ah, vai dar tiro? Que comece então por mim, agora. Vai, atira ou para de bravatas, porque isso do que você se orgulha ser eu já fui há muito tempo e não tenho nenhuma saudade!”. O meganha não atirou, é claro, e foi murchando, murchando até sumir. Ela botou o sujeito num vidrinho de esmalte e a diligência acabou. Coisas no caminhão, depósito público e fim. Isto tudo sem auxílio de força policial. 

Nessa mesma ocasião, frequentávamos, eu e essa valorosa colega, um curso preparatório visando à magistratura, que se dava em todos os sábados e durava o dia inteiro. Até que ela começou sentir um desconforto abdominal, sempre depois do almoço. Foi piorando, chegando a ter dores horríveis. Procurou um médico, fez exames e mais exames para, enfim, ter diagnosticado um câncer no intestino. Ela operou, fez quimioterapia. Depois de pouco tempo, o câncer voltou. Operou novamente e de novo passou pelo insuportável tratamento. Sem reclamar, sem se queixar, sem perder a fé, sem dar um pio, sem abaixar a guarda. E venceu. Logo, logo já estava participando de corridas de rua. Um exemplo de mulher, independentemente de sua orientação sexual, que, por sinal, era hetero, esposa e mãe dedicada, se é que isso faz alguma diferença. Ela era mulher com a “porção homem” em sua plenitude, sem deixar de ser feminina.

O tempo passou e eu vim para São Paulo. Com cada um cuidando de suas vidas e seus afazeres, os contatos foram rareando cada vez mais, mas as lembranças e o amor fraternal continuam mesmo a distância.

Recentemente, eu estava tomando um café com meu irmão caçula, que também é Oficial de Justiça. Conversa vai, conversa vem, falando das particularidades do ofício, mencionei esses episódios envolvendo a querida colega. Foi quando ele, após ouvir com atenção, falou com certo espanto de um fato curioso. Disse ele que estava, um dia, numa concessionária de veículos no Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro, quando foi atendido por um vendedor e começou a conversar. Talvez por tomar conhecimento do cargo de meu irmão, o rapaz passou a lhe contar a sua vida, os seus reveses, a sua separação traumática e o drama que enfrentara quando a ex-mulher sumiu com a sua filha e que nenhum Oficial de Justiça a encontrava. Relatou que vários tentaram, sem êxito, até que apareceu uma Oficiala diferente. Oficiala, não: segundo as palavras dele, um anjo. 

Era a nossa heroína de quem falei o tempo todo: um anjo chamado Rita.

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Sufoco
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Depois de tantos anos como Oficial de Justiça e já estando com tempo suficiente para me aposentar, confesso que poucas coisas ainda me surpreendem. Nesses tantos anos de Oficialato já vi de tudo, mas o que me marcou mesmo foi uma das primeiras diligências que cumpri e olha que isso foi no final do século passado...

Eu tinha 20 anos, loira, alta, magra, fazia um calor daqueles que a gente mal sai de casa e já começa a pingar. Coloquei um macacão bem leve e decotado para suportar o calor infernal e parti para a primeira tarefa do dia. A diligência deveria ser cumprida num Distrito Policial no bairro de Guaianases, extremo da Zona Leste de São Paulo. “Decerto o destinatário seria um Policial, um Escrivão ou mesmo o Delegado” - pensei.

Ao chegar no DP fui muito bem atendida pelo Delegado, que pediu que eu aguardasse pelo Agente de Polícia. Alguns minutos depois o Agente chegou e pediu que eu o acompanhasse. Conforme fomos andando notei que ele estava me levando até a carceragem. Comecei a tremer, pois percebi que o destinatário do mandado era alguém que estava preso!

O espaço era dividido em 4 celas. À esquerda e à direita havia celas com aproximadamente 20 presos. No centro um espaço vazio, por onde adentramos, e no fundo outra cela com apenas 2 encarcerados. Eu passei por todos os presos em direção à cela do fundo, intimidada - desfilando com meu macacão decotado, que definitivamente não era roupa para se usar naquele recinto - e, surpreendentemente, não ouvi sequer um sussurro dos presos. 

O Agente abriu o cadeado, disse que eu podia entrar e indicou o destinatário. Lá estava eu dentro da cela junto com o destinatário do mandado, cara a cara. Eu simplesmente não sabia o que fazer. Cumprimentei-o com um aperto de mão, procurei ser simpática e expliquei do que se tratava. Ele assinou a contra-fé e foi extremamente educado. Ao se despedir, falou com muito respeito:

- Olha, eu sei o constrangimento que você deve estar passando e, se você me permitir, eu gostaria de te dar um presente. Isso é um porta-caneta que eu fiz aqui na prisão, na aula de artesanato. É feito com palitos de sorvete e espero que lhe seja útil.

Eu não tive como recusar, ali naquele ambiente, totalmente deslocada, o preso tentando ser gentil. Aceitei o presente e saí daquele lugar, reflexiva, enquanto o Agente me contava que o homem estava preso por estelionato.

Naquela época eu ficava lotada em uma Vara específica e cumpria somente os mandados por ela expedidos. Cheguei na Secretaria ainda apavorada e fui conversar com a chefia imediatamente.

Expliquei detalhadamente tudo o que tinha acontecido. Pedi encarecidamente que nesse tipo de mandado fosse colocada uma observação que o destinatário estava preso, para eu poder me preparar melhor. 

Meu chefe ouviu atentamente o meu relato e achou tudo normal, mas ficou completamente indignado com um único detalhe. Achou um absurdo eu ter aceitado o porta-caneta feito com palitos de sorvete pelo detento. Ele disse que eu tinha que ter recusado e que isso era inadmissível. 

Eu gostei do presente e o usei em minha mesa de trabalho por muitos anos.

(Vivido por Simone Horta Walter)

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Paradoxos
Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Esta história fala de ilusões e de sonhos e de quanto o ser humano precisa deles para sobreviver.

Quando eu era Analista do TRT da 2ª Região, trabalhei em Varas e em Gabinete, mas queria muito ser Oficial de Justiça, pois achava que teria mais flexibilidade de horário e autonomia sobre o meu trabalho.

Então me esforcei e passei no concurso para Executante de Mandados, sendo designada para atuar na Zona Sul da Capital. O trabalho era puxado e me deparava com muitas penhoras e providências em casa de sócios, o que se fazia muito desgastante física e emocionalmente para mim. Ouvi dizer que os Oficiais que atuavam no Centro de São Paulo é que eram felizes: uma área repleta de empresas, todas elas concentradas numa pequena área, em que se poderia trabalhar à pé.

Meu sonho passou a ser trabalhar no Centro da cidade e, por remoção interna, consegui a almejada transferência.

Pronto, agora tudo seria mais simples.

Só que esqueceram de me contar um detalhe, que eu teria que ser muito mais forte do que tinha sido durante toda a minha vida, pois iria me deparar diariamente com a miséria humana, com os menores abandonados à sorte das ruas, com os viciados que perambulam como zumbis atrás de um sopro de vida, com os mendigos esfomeados, com trombadinhas armados que arriscam a própria vida e não temem pela vida alheia, pois não têm nada a perder, enfim, teria que lidar diariamente com a dor do outro, com tudo aquilo que muitas vezes a gente finge que não vê e chora calado diante de nossa impotência em meio a um mundo tão frio e cruel. E tudo isso sob o badalar dos sinos da imponente Catedral da Sé...

 E era sem muitas expectativas que eu ia trabalhar todos os dias, sabendo que em cada portinha daquela área central podia ter de tudo, uma empresa escondida, pessoas vivendo em condições precárias, trabalhos que mais pareciam análogos à condição de escravo, cortiços, sempre uma nova realidade muito além da minha imaginação.

O trabalho seguinte era muito simples: intimar um sócio acerca de uma penhora “on-line”. O endereço era de um apartamento localizado numa travessa da Praça João Mendes. No térreo havia uma loja Gospel, bastante movimentada, vendendo Bíblias, livros, CD's, DVD's. Passei por ela ao som de uma agradável música de louvor. Ao lado, com o número indicado no mandado, uma porta de ferro muito velha, sem pintura e toda enferrujada, dava acesso a um predinho bastante antigo, muito mal conservado, de uns 10 andares. Notei um entra e sai de muitos homens, orientais na sua grande maioria. Como não havia porteiro, segui por um pequeno corredor escuro e avistei um elevador obsoleto, daqueles que a gente agarra um puxador e fecha a porta pantográfica. Aguardei na fila juntamente com vários homens, alguns com a camisa semi aberta, que me olhavam com curiosidade. Ficamos ali até o elevador chegar. Procurei me concentrar na música que vinha do lado de fora, mas o elevador chegou rangendo, chacoalhando tanto, que deu um baita tranco quando aterrissou. Vários homens desceram, dando lugar para os que estavam na fila entrarem.

Confesso que não senti segurança em entrar naquele elevador barulhento juntamente com aquela gente pouco amistosa. Olhei um pouco mais à frente e vi uma escada bastante estreita, escura e imunda, em formato de caracol. Tomei coragem e decidi subir a escadaria sinistra até o oitavo andar. Só me deparava com mais e mais homens esquisitos passando por mim, subindo e descendo... Eu agarrei a minha pastinha, tentando esconder o decote da camisa social que estava usando e fui subindo...

Finalmente cheguei no oitavo andar e mal terminei o lance de escadas, me deparei com um poster enorme de uma mulher com roupas íntimas, toda sensual, e uns dizeres do tipo “Gostosa”, “Safada”, “Faz de tudo por R$ 10,00”. Eu fiquei ali, parada, sem saber bem o que fazer, naquele corredor medonho. Chegou um homem oriental e me encarou de maneira desconfiada por alguns segundos e logo em seguida bateu várias vezes de forma grosseira na porta que ali havia.

A porta foi aberta por um travesti enooorme, todo sorridente, muito maquiado, repleto de acessórios, brincos, arranjo no cabelo, com uma belíssima lingerie vermelha. Ao me ver, ele ficou sério e eu comecei a gaguejar, perguntando pelo destinatário do mandado. Ele falou com a voz bem grossa e empostada que desconhecia completamente aquela pessoa e foi me dispensando, dizendo que eu estava no endereço errado. O oriental, impaciente, confirmou que não conhecia a pessoa que eu estava procurando, entrou rapidamente e bateu a porta fazendo o maior estrondo.

Eu só queria sair dali o mais rápido possível, retornei para a escada sinuosa e fui descendo o mais depressa que consegui, com as pernas bambas, assustada, observando pelos andares que o prédio todo era um "inferninho", pois todas as portas tinham posters com mulheres e homens em poses sensuais, oferecendo serviços sexuais a preços bem módicos. O térreo não chegava nunca e cada vez mais e mais homens subindo e descendo aquelas escadarias, fui percebendo mais e mais lascívia nas imagens, nos sons, nos cheiros de todos os corredores.

Cheguei finalmente no térreo e saí daquele lugar o mais rápido possível, ouvindo novamente uma bela melodia de louvor. Estava tão atordoada, que quase fui atropelada em meio aos carros. Continuei meu dia de trabalho reflexiva do quanto a gente se ilude nesta vida.

Pensei na igreja suntuosa cercada de mazelas... no inferninho em cima de uma loja de artigos evangélicos...  no quanto nossos sonhos podem se tornar nosso pior pesadelo... e no quanto as trevas podem estar tão próximas da luz.
 
(Essa história foi narrada pela Oficiala Maria da Paz e convertida em crônica pela Oficiala Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza)

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Simplesmente, um Ser Humano
Por Miguel Nolasco de Carvalho Neto (38ª VT/SP)

Diante da tela alvíssima, defronto-me com o desafio de escrever algo sobre a profissão de oficial de justiça. O cursor está piscando de maneira intermitente e a cada piscada, parece me perguntar: “O que vai escrever?”... “O que vai escrever?”... “O que vai escrever?”...

Tantas coisas já se passaram!... Concordo: oito anos de carreira não é muito; mas também não é pouco. Embora minha ideia inicial fosse escrever alguma crônica que revelasse uma situação inusitada da vida de oficialato, ao final, depois de tanto pensar – esse bendito cursor piscante! – resolvi escrever sobre essa tela branca e amedrontadora uma resenha sobre as diversas fases pelas quais passei nesses anos. Vamos ver o que sai.

Quando assumi o cargo, não sei se fiquei contente ou triste. Comecei a sentir um incômodo: agora, eu era uma “autoridade”. Essa palavra, aliás – autoridade –, traz consigo toda uma conotação boa e má – tristemente alegre –, que no princípio da carreira nos faz acertar algumas vezes, mas errar constantemente... A-U-T-O-R-I-D-A-D-E. Bonito. Gostei... Carteirinha? Ou carteirada? Era a fase da autoridade: tenho um poder, mas não sei como manejá-lo direito. “Identifique-se, ou chamarei a polícia...”; hum, não: não funciona... “Senhor! Vou entrar e pronto!...”; mau... “Crachá? Foto? Senhora, eu sou oficial de justiça, e as regras do prédio não superam os ditames da lei...”. Vivendo, errando e aprendendo... foi uma fase de grande sofrimento para mim, porque queria acertar, mas a inexperiência me fazia errar.

Entretanto, o tempo passa. Como que numa escultura, a personalidade do oficial de justiça vai sendo modificada a duros golpes de cinzel. Então, chega o momento de uma segurança maior: o “justiceiro”. Porque “eu conheço meus limites e minhas atribuições; e agora, sim, farei JUSTIÇA!” J-U-S-T-I-Ç-A! Gostei. “O sistema processual é injusto, mas EU vou consertar o mundo”. Passei a ser implacável com os devedores. “Misericórdia? Não, ele já teve a chance dele, quando da homologação de cálculos”; “um devedor é sempre devedor!”...; “se a senhora está mal de vida, imagine a sua empregada, que não recebeu os direitos dela...”; “entendo sua situação, mas não adianta me contar sua história; fale com o Juiz”...

Que difícil! Porque o oficial de justiça, quando pisa na rua, deixa a “realidade da lei” para adentrar na “realidade da vida”. E a “realidade da vida” nos dá lições tanto pelo belo, quanto pelo feio. Lidamos com a feiura da miséria alheia: tanto quem processa como quem é processado tem misérias. Eu tenho misérias também... É difícil fazer justiça, porque a injustiça é nossa companheira de caminho; e não conseguimos ganhar distância dela. E vem a fase da “desilusão”: queríamos melhorar o mundo, mas isso parece mais complicado do que parece. Da desilusão, chega-se ao ceticismo com um pequeno pulo.   

Ceticismo: nova fase! “Para que me importar com tantos problemas que nem são meus?”... “O jeito é ir levando...”; “não, meu senhor; não há justiça, mesmo; há apenas um mandado a ser assinado e cumprido”; “eu sei, minha senhora... mas é a vida: preciso fazer essa penhora; e aí veja com seus advogados o que fazer – se é que dá para fazer algo. Boa sorte!”...

Até que cheguei à Rua dos Bandeirantes. Uma senhora, doravante denominada “executada”, estava lá para me atender; e não era por acaso. Ah!... nada é por acaso. Citações, penhoras, etc... fazia ali o de sempre. Tudo isso, num pequeno apartamento, quase sem mobília. Uma “executada” que, no meio da desgraça financeira, havia sido deixada pelo marido e rejeitada pelos filhos. Ela era a empresária: ela era a causa da ruína da família.

Diante das várias diligências que fazia no seu endereço, falávamos por mensagens de celular para combinar o horário. Até que, durante uma das diligências, deu-me uma informação que ia além do mero processo trabalhista: a “executada” explicou-me que talvez fizesse uma cirurgia de alta complexidade, e que, se isso ocorresse, passaria algumas semanas no interior, para ser auxiliada pela irmã durante a difícil recuperação que teria. Passaram-se os dias...

No dia 22 de julho de 2016, a “executada” me enviou uma mensagem: faltava uma semana para a cirurgia; por isso, de fato, ficaria ausente. Mas estaria à disposição no celular. Respondi como pude: “Ok, agradeço a informação. Desejo-lhe uma ótima recuperação”; “Obrigada, pois preciso de toda a ajuda necessária”.

Foi a última mensagem que recebi da “executada”.

Passados mais de três anos, nunca mais a encontrei. Não chegaram mais mandados, nem mensagens. Mudei de bairro, e até me “esqueci” desse fato. Quando pensava em escrever este texto, resolvi mandar uma nova mensagem para a “executada”: sem recebimento; sem resposta. “Ora, provavelmente mudou o número do celular...”

Ao escrever estas linhas, percebo em mim uma mistura de profissionalismo com perplexidade. “Decisão judicial” e “decisão da vida”: realidades distintas, que ainda não se conformaram em caminhar juntas. E o oficial de justiça corre de um lado para outro, entre estas duas realidades, e tenta consubstanciar tudo numa “certidão”. “Certifico que...”

Ao escrever estas linhas, percebo que eu, como oficial de justiça, passei por diversas fases. Já ultrapassei as fases da “autoridade”, do “justiceiro”, do “desiludido” e do “cético”. Esta executada ajudou-me a iniciar uma nova fase.

Descobri que o oficial de justiça é, simplesmente, um ser humano.

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Sempre no posto
Por Marli Aparecida Perim

Em jurisdições menores, Alto Tietê, o tempo vai passando e os executados vão se tornando conhecidos, repetidas as execuções, diversas as razões sociais do mesmo estabelecimento, penhora livre, boca do caixa, faturamento, mudança de quadro societário, suspensão temporária de atividades, vida seguindo.

Num destes estabelecimentos, fornecedor de combustível, procedi penhoras inúmeras. O "dono" do lugar tinha uma rede de estabelecimentos nas cidades vizinhas, mas sempre em nome de outros. Na década passada, um mandado na boca do caixa levou semanas para o cumprimento, o "dono" figurando como depositário nos mais de 20 autos. A alegação de mudança de sócios para fugir da execução foi sendo sistematicamente utilizada,  os frentistas entregando: - o dono de verdade é o mesmo...a dona é fachada...- assim se referiam às novas proprietárias junto a comentários preconceituosos em relação a escolha de orientação sexual delas, mas o "dono" foi desaparecendo do lugar. De sucessão em sucessão as penhoras continuaram e os anos foram passando. O imóvel sobre o qual funciona o estabelecimento também foi  objeto de penhora.  

Fim  de tarde, há poucos dias, lá fui entregar um auto de penhora em faturamento. Eis que o "dono" estava lá, tomando uma cerveja, cordão de ouro no pescoço, próximo ao balcão de pagamentos. Dirigiu-se a mim aparvalhado: mas a senhora continua por aqui? Não se aposentou ainda? Respondi: ainda não, e, pelo visto, o senhor também não se aposentou e continua "dono" por aqui.