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21/08/2019 17:25:18

Crônicas: Aojustra divulga outras duas histórias enviadas por Oficiais de Justiça
Concurso segue até o final de novembro com premiações aos participantes.

A Aojustra realiza, até o final do mês de novembro, o Concurso de Crônicas sobre o dia a dia do oficialato. Como divulgado na última semana, a decisão de prolongar o envio dos textos foi da Assembleia Geral ocorrida no último dia 12 de agosto. O intuito é registrar a atividade do Oficial de Justiça, através de histórias reais que podem ser engraçadas, sensíveis, inusitadas ou até sobre os riscos enfrentados no cumprimento das ordens judiciais. 

Os cinco primeiros colocados serão contemplados com uma viagem para Colônia de Férias em Caraguatatuba conveniada com a Associação, além de outros prêmios que serão entregues aos participantes durante a confraternização de final de ano da Aojustra.

Para participar, o Oficial deve enviar a crônica para os e-mails aojustra@outlook.com e ane.galardi@gmail.com. É importante que o texto esteja devidamente identificado com o nome completo do autor, bem como a lotação e um número de telefone para contato. 

“Convidamos mais Oficiais a se inspirarem e nos enviarem crônicas para que consigamos implementar a ideia da elaboração de um livro sobre o dia a dia do oficialato”, afirma o presidente Thiago Duarte Gonçalves. Veja AQUI todas as crônicas concorrentes

Na divulgação desta semana, a Aojustra apresenta os textos enviados pelos Oficiais Cezar Adriano Dias, da Justiça Federal de São Paulo; e Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza da 27ª VT de São Paulo. Confira!

Confira as crônicas:

O dia está cinza
 Por Cezar Adriano Dias (CEUNI/JFSP)

Lentamente abro os olhos. Por cima do corpo deitado ao meu lado, vejo fios de luzes entrando pelas arestas da janela. Deve ter amanhecido. Terei que fazer uma condução coercitiva logo mais e me arrepio. Será que dará tudo certo? Não conheço a área onde a testemunha mora. Não conheço a testemunha. Muitas coisas para dar errado! Me arrasto pela cama até a sua beirada. Para me levantar apoio-me na parede. Levanto e olho novamente para o corpo deitado. Os cabelos iluminados cobrem parcialmente o rosto. Que sorte eu tive! Cambaleando vou em direção ao banheiro e a luz entrando pela sua janela me ofusca. Será que estará sol em São Paulo? Olho através da janela até conseguir distinguir o céu. Tudo cinza. Acho engraçada esta constatação e me sento no vaso.

Eu gosto de banheiros! Acho que trouxe isto da época da faculdade: na minha república, havia mais cinco homens e o único lugar em que se tinha privacidade era o banheiro. Bons tempos. Do lado de fora, ouço as maritacas se esguelando. Olho novamente para o céu. Realmente está tudo cinza. Um sorriso amarelo surge em meu rosto. Sem desejar, começo a me lembrar dela. Às vezes, sinto muita falta dela. Adorava a sua gargalhada. Todos adoravam. Será possível o dia ser cinza, apesar de tudo ser colorido ao seu redor? Fecho o sorriso. Esta pergunta me assombrou por meses até eu conseguir entendê-la. Há cor onde há cor, a não ser que se seja daltônico, eu pensava. Hoje eu entendo.

Tudo começou quando a Central de Mandados foi criada. Nós, que estávamos acostumados a cumprir mandados numa determinada área, tivemos que optar por outra, em virtude da antiguidade. Escolhemos as únicas áreas vizinhas que restavam, na periferia da cidade. Ela, que era acostumada com uma área bem estruturada, de classe média, de repente viu-se diante da estupidez humana. Pessoas entulhadas em um mesmo cômodo, esgoto a céu aberto e sujeira por todo o lado. Andares alcoolizados e cambaleantes. Crianças descalças correndo entre vielas fétidas. Fios elétricos numa verdadeira teia eletrificada. E a violência, a violência do sistema contra eles. Deles contra nós.

Não que ela tivesse realmente sofrido algum tipo de violência explícita, não que eu tenha presenciado. Já fui assaltado, algumas vezes, na minha área. Já fui xingado, também. Mas ela, não. A violência está nos olhos de quem conversamos, nas respostas secas e truncadas, no medo, nos olhos das crianças. No vagar de adolescentes e adultos, que sem ter o que fazer, se tornam desconfiados e perdidos. No agir de quem vê com naturalidade a agressividade que a vida lhe impôs. A violência se sente no ar.

O mal que a afligiu não foi súbito. Foi literalmente, maldoso. Lento. Foi minando- lhe a autoestima e a sua percepção de capacidade. Justo ela, que havia enfrentado e conquistado tanta coisa sozinha, convenceu-se de ser inapta para trabalhar. Como eu percebi? Não percebi. Só aconteceu.

Aconteceu em um dia em que eu fiquei em casa. Eu precisava pesquisar a avaliação de alguns maquinários e ela precisava fazer suas intimações urgentes. Três horas depois que ela havia saído, tocou o telefone. Ela chorava. Dizia que me amava e que não queria morrer ali sozinha. Eu mal conseguia falar...ela havia sido sequestrada ou rendida por algum bandido? Não, ela paralisou. Encostou

o carro na principal via de acesso a São Paulo, e ali ficou. Quando cheguei para retirá-la do carro, ela ainda chorava. Entre soluços, pedia desculpas pelo trabalho que estava dando. Qual trabalho? Dali em diante foram muitos os pedidos desnecessários de desculpas.

Começou com terapia, psiquiatras e remédios. A doença atingiu nossas relações sociais e familiares. Parecia que tudo ia desmoronar. Mas, ainda sim, ela queria ser forte, dizia que teria que trabalhar sozinha. Inúmeras vezes, saiu para trabalhar e retornou minutos depois, sem conseguir chegar até a estrada. Se trancava no quarto. Chorava mais.

A convenci de que poderia acompanhá-la no cumprimento dos mandados. Nesta época, ela me perguntou: ”eu vejo tudo cinza, mas você vê cor nas manhãs”?

Agora, viro para a janela, como se eu quisesse ter certeza: de fato, o céu está cinza.

Cheguei dirigindo o carro. A rua era estreita de forma que apenas um carro poderia transitar, mas ainda assim, existiam diversos veículos estacionados em cima das calçadas, também estreitas. Dirigi até achar a numeração que, na verdade, era o acesso em declive a uma viela. Parei o carro, também na calçada, de frente a uma escada. Do lado direito, uma casa alta em alvenaria com tijolos expostos, aparentava ter sido construída em etapas. Pareceu-me que os proprietários aumentavam um pavimento sempre que podiam. Acho que já estava no quarto acima do nível da rua. Mas a casa devia ter mais pavimentos, pois a construção acompanhava parte da escadaria abaixo. Olhei para ela e ela olhava fixamente à frente. Peguei em sua mão. Frias. Ela olhou para mim e sorriu timidamente. Parecia estar juntando forças. Eu falei que ela não precisava descer e que iria em seu lugar. “A numeração deve ser toda aleatória, não vamos localizar de qualquer jeito”, disse sorrindo. Ela ficou séria e rosnou que era capaz de descer aquela escada. Não quis que eu a acompanhasse. Teimosa. Do carro vi sumindo, enquanto descia com as mãos apoiadas no muro sujo. Voltou vitoriosa: número localizado e executado intimado. Vitoriosa? Sim, mas a que custo? Quanta energia, quanta força ela teve que gastar para essa diligência.

Tivemos altos e baixos. Passamos a viajar com mais frequência para que ela (e eu!) pudéssemos recarregar as energias. Fizemos dívidas, mas não importava! Veio a surpresa: uma nova vida. Uma linda vida! Um novo motivo para se esforçar, mas uma nova batalha a se travar. Vencida! E vejam: cores para as manhãs! Novas batalhas viriam, mas não enxergávamos mais o fundo do poço.

Suspiro. Eu gosto de ficar no banheiro refletindo. Realmente, Deus é um cara gozador que adora brincadeiras, diz a música. Novo suspiro. É uma pena, ela se foi tão cedo!

Inspiro profundamente como se fosse faltar ar. Levanto. Acho engraçada esta minha mania de levantar e ir para o banheiro, mesmo sem vontade alguma. Saio mais disposto para o quarto e noto a cama vazia. Sinto o cheiro de café vindo da cozinha. Adoro. Realmente, tive sorte de poder recomeçar. Olho o relógio. Melhor eu me aprontar. A condução coercitiva não vai se fazer por si só, e o pequeno que dá cor às manhãs, irá acordar. Abro a janela do quarto completamente. O dia está cinza, mas o céu tem mais cores.

Em homenagem a Alessandra Taguchi, Oficial de Justiça Federal da JFSP, minha falecida esposa que desencarnou em 31/12/2015, após um ataque cardíaco fulminante. Servidora íntegra, enfrentou a sua depressão e a síndrome do pânico com garra, dedicando-se, além do que podia, a nosso filho, Eduardo Taguchi Dias, que herdou da mãe toda a inteligência, integridade e teimosia.


Palabrotas
 Por Bruna Vivian Eustachio de Toledo Piza (27ª VT/SP)

Naquela tarde de verão eu pingava de tanto calor e suor e a água que eu levava no carro havia acabado. Estava num bairro residencial de São Paulo, e por ser um local que eu não estava acostumada a diligenciar eu não sabia onde havia comércio nas proximidades, então a sede teria que esperar. Na próxima parada eu deveria efetuar a penhora de um imóvel. Com muita sorte eu seria atendida por uma boa alma que me ofereceria um delicioso copo de água gelada... 

Era um sobrado simples e antigo, localizado numa rua sem saída fechada por um enorme portão de ferro. Toquei no interfone o número do sobrado, mas ninguém atendeu. Um vizinho que estava chegando no local me disse que na casa que eu estava procurando morava uma senhora espanhola meio surda e se ofereceu para ir chamá-la. Com tanta gentileza do rapaz aquele parecia ser meu dia de sorte. 

Após alguns instantes chegou uma senhora robusta, com sotaque espanhol, falando alto e gesticulando exageradamente. Expliquei o que estava acontecendo e a determinação judicial na qual eu deveria dar cumprimento. Ela se deu conta de que o executado era a pessoa que havia vendido o imóvel a ela e a seu falecido marido há mais de 20 anos, mas também lembrou-se que o Contrato de Compra e Venda do imóvel não fora averbado no Cartório de Imóveis, razão pela qual ainda constava o nome do antigo proprietário no registro do imóvel. A anciã começou a proferir palavrões inomináveis em face de seu finado marido, dizendo que ela sempre falou para ele registrar o imóvel, mas que aquele *&%#@ nunca tinha iniciativa, que aquele *%$#&* a enrolou a vida toda e ainda deixou esse abacaxi para ela resolver. 

Ela implorou que eu não fizesse a penhora, falava como se estivesse num palco, numa cena de tragédia em que fosse a atriz principal. Eu expliquei que se tratava de uma penhora do imóvel e que eventuais alegações deveriam ser feitas em Juízo. 

A senhora surtou, começou a gritar e a vir pra cima de mim com o dedo em riste. Eu não via a hora de sair dali e tomar água pois estava quase desmaiando (nem pensar em pedir um copo de água, pois era capaz de vir envenenada), além do que eu estava prestes a sofrer uma agressão física. Então expliquei calmamente à senhora que ela deveria procurar um advogado e fui me despedindo. Ela continuava a esbravejar, e eu disse, encerrando a conversa:

- Bem, então é isso, a senhora tem um problema e precisa procurar ajuda jurídica para resolvê-lo – e mais que depressa fui me afastando dela. 

Ela ergueu o braço e me respondeu aos berros:

– Eu sou espanhola, tenho sangue espanhol, você não sabe do que eu sou capaz, eu vou te mataaar!!!

Eu respirei profundamente e respondi com firmeza olhando bem no fundo dos olhos dela:

- Bem, nesse caso, a senhora, que já tem um problema, terá dois problemas para resolver!

Ela arregalou os olhos, deu um passo para trás, abaixou o braço, e respondeu gaguejando:

- Desculpe, não foi isso que eu quis dizer, sabe como é, aquele meu marido só fazia besteira....

Ela começou a querer chorar, eu fui encerrando a conversa e me despedi educadamente, antes que ela tivesse outro surto. Ela se acalmou, me acompanhou até o portão e se despediu dizendo:

- Obrigada, querida, bom trabalho, vai com Deus!


Da assessoria de imprensa, Caroline P. Colombo